A oração da cabra preta

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por Célio Simões (*)

Célio Simões - Blog do JesoÓbidos tem o privilégio de se debruçar sobre a passagem mais exígua do caudaloso Rio Amazonas, o maior do mundo em extensão e volume d’água. Todos sabem e se orgulham dessa particularidade, que exerce tremendo fascínio ao viajante que de barco vai de Santarém a Juruti.

O que nem todos sabem é que um grande e belíssimo rio está abrigado dentro dos limites territoriais do município, que é o Parú do Oeste, que alguns chamam de Itapecurú ou Cuminá.

Não se trata de cultura inútil, mas a dúvida pode ser relativamente espancada se analisarmos o mapa georreferenciado daquela região. O Parú do Oeste (nome dado em contraposição a outro rio, o Parú do Leste), tem suas nascentes nas fraldas da Serra de Tumucumaque, já na fronteira do Suriname, descendo rumo ao Amazonas pela vasta extensão dos chamados Campos Gerais, às vezes tangenciando a fronteira com Oriximiná, até encontrar-se com o Rio Cuminá-Mirim, ligado ao Rio Craval pelo Igarapé Jacuí, cuja continuação tem o nome de Rio Mamiá.

A paisagem vista de cima (em torno de mil metros de altitude) encanta e confunde pela capilaridade de novos rios, furos, igarapés ou córregos gerados por cursos d’água maiores ou menores, muitos sem nome ou sem fama, porque a grandiosidade do Amazonas embota a dos demais.

Mas todos são lindos e propiciam a vida de inúmeras comunidades que sem eles não existiriam, só conhecidas ou visitadas pelos citadinos à época das campanhas eleitorais. Flexal, Tiradentes, Santo Antônio, Alegria, Chuvisco, Santa Luzia, Deus Dará, Repartimento, Cuiero, São Raimundo, Porção, Castanho, São Francisco, São Miguel, Remanso, Pirarucu, Delfina, Fortaleza.

A comunidade mais longínqua é a de Delfina, situada numa bela curva do Parú do Oeste. Quanto àquela região, a imagem mais marcante que dela se tem é a de um imenso trecho da Terra, onde a natureza gigantesca isola ainda mais o homem disperso e abandonado.

Nessa imensidão, que abriga apenas dois e meio milésimos da população mundial e a densidade demográfica é de pouco mais de 1,5 habitantes por quilômetro quadrado, justamente numa das comunidades mais isoladas do planeta, nasceu Orlandino, neto de índio Mura e filho de mãe desconhecida.

Passou a infância e a juventude enfiado nas matas do Castanho, ora armando arapuca para capturar aves silvestres, ora matando peixe com arco e flecha que ele mesmo fabricava. Era lunático desde menino e tinha um gênio tenebroso, como todo índio Mura, passando até dois ou três dias sem dar uma única palavra, sem que ninguém pudesse explicar seu comportamento arredio. Pulava nu no igarapé, sem se importar com piranha ou jacaré tinga.

Já adulto, detestava trabalhar em roça e não admitia que ninguém lhe desse qualquer tipo de ordem. Quando saía para pescar, madrugava e só voltava à noite, vergado sob o peso de muitos peixes, pois dominava os segredos dos pontos onde eles se escondiam. Morava com o pai e uma tia, que tratava com respeito, porém não tolerava qualquer intromissão deles em sua vida. Ambos morreram já idosos e ele ficou sozinho na mesma casa, acompanhado de três cães com os quais caçava.

Aqui acolá Orlandino tomava umas pingas, mas não chegava a ficar embriagado, apenas falava uma mistura de português com certo idioma indígena, que ninguém entendia; nesses momentos, a melhor coisa era ficar longe dele e de seu olhar felino, pois a impressão que dava é que a qualquer momento poderia atacar alguém com a peixeira que invariavelmente trazia na cintura.

Certa vez ficou no igapó até quase dez da noite, quando resolveu voltar para casa. Andava pelo meio do murizal sem medo de cobra; por alguma estranha coincidência, nunca foi mordido por elas. Quando chegou a casa, os cães estavam ganindo do lado de fora, com o rabo entre as pernas, olhar súplice, espavoridos de medo de alguma coisa.

Ele passou direto e abriu a porta, que estava fechada com um grande japá. Dentro da sala havia uma enorme cabra preta, animal que não era de sua criação. Orlandino enxotou o animal, que fugiu para o outro cômodo, o quarto. Ele foi atrás. Seu compadre Danilo, morador próximo, passou nesse momento em frente à barraca e ouviu vozes, como se estivessem duas pessoas conversando.

Sabendo que o amigo morava sozinho, entrou para verificar, porém só viu Orlandino falando com alguém que ele não vislumbrava. Indagado, obteve como resposta que não era nada, que estava brincando com seus cachorros, o que lhe causou estranheza, pois eles continuavam chorando de medo do lado de fora…

O tempo foi passando. Um dia Orlandino foi serenar uma festa no Castanho e conheceu uma moça muito bonita, chamada Ângela. Ele já tivera aventuras rápidas com muitas, que logo o abandonavam, quando descobriam quão esquisito era seu parceiro. Com Ângela foi diferente. Ela era meiga e compreensiva, não discutia com ele, não o contrariava e quando ele chegava com o demônio no couro, procurava acalmá-lo com seu discurso afável e voz de veludo.

Disse a ela que não ia casar, porque mulher não mandava nele, porém Ângela apareceu grávida, provocando a revolta da família que não aceitava aquele tipo de relacionamento, ainda mais com um sujeito estúrdio como aquele.

Ângela e o bebê morreram no parto. Orlandino quis matar a parteira, porém ela, depois de esconder-se por vários anos nas comunidades vizinhas, fugiu definitivamente para Óbidos, onde viveu sua longa vida sem ter certeza se seria ou não encontrada por aquele incrível sujeito, que segundo comentários à boca pequena, não temia nada nem ninguém porque sabia a oração da Cabra Preta, para a qual, naquele encontro em sua casa, pediu apenas que lhe desse coragem.

Certo dia, seis da tarde, ele cuidava de um tambaqui no jirau de sua barraca quando sentiu uma presença estranha às suas costas. Ao se virar, deparou-se com Ângela, com o bebê no colo, ambos trajados com a mesma indumentária com que foram sepultados. Continuou a escamar o tambaqui, como se nada tivesse acontecendo. Encerrada a tarefa, cozinhou o peixe e deu um pedaço para os cães. Ele andava para um lado e a diáfana imagem de sua amada o seguia. Quase meia hora nesse drama. Em determinado momento ele perdeu a paciência e bradou:

– Pára com essa frescura!

Olhou mais uma vez e lá estava Ângela, desta vez sem o filho no colo. Indiferente, Orlandino armou a rede na varanda da barraca, deitou e dormiu, sem dar bola e sem ter medo daquela visão que para qualquer mortal pareceria estarrecedora. Dormiu até de manhã. Quando acordou, a visão havia desaparecido por completo.

Muitos meses depois desse fato, alguém bateu à frente de sua casa, chamando-o pelo nome, convidando-o para ir com ele até São Francisco. Achou esquisito por causa da distância e por ser tarde da noite, mas, conhecendo a voz do amigo Danilo, resolveu ir. Na escuridão, andaram sem trocar nenhuma palavra, o suposto compadre Danilo à frente e ele atrás, com um terçado na mão.

Mais de duas horas de caminhada, enquanto estava concentrado no estreito caminho de terra cercado de juquiri por todos os lados, levantou a cabeça e viu que a pessoa que julgava ser Danilo havia desaparecido. Procurou pelos arredores e não o encontrou. No céu, uma lua esmaecida não tinha forças para iluminar a capoeira alta, mas mesmo assim, depois de chamar um sonoro palavrão, resolveu voltar para casa. Chegou quase duas da madrugada, atou a rede e dormiu profundamente, sem ver mais nada. Nem se preocupou em saber quem era o sujeito que desaparecera à sua frente, depois de fazê-lo andar no mato a desoras.

Quando eu ainda era moleque, casualmente conversei com a velha parteira que já passara dos setenta anos e se incumbiu de me revelar todos esses fatos. Chegamos à conclusão que se Orlandino, em oração, tinha pedido coragem à Cabra Preta, esta lhe dera de sobra, porque seu comportamento, até mesmo com as coisas que a gente não consegue explicar, era invariavelmente próximo do irracional.

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* Advogado, é fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos. Escreve regularmente neste blog.


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Advogado e escritor, nasceu em Óbidos. É membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Reside em Belém e escreve regularmente neste blog.

6 Comentários em A oração da cabra preta

  • AMARRAR ORACAO NEGRA INFALIVEL TENHA A CERTEZA DO SEU PEDIDO, NAO BRINQUE COM
    MAGIA! PUBLIQUE 7 VEZES. QUANTO MAIS FOR REALIZADA MAIS FORTE SE TORNARA PARA MIM E
    PARA A PESSOA QUE A REALIZAR.
    EM NOME DE LUCIFER, JA ENQUANTO NAO ME ASSUMIRES,(d.l.o)
    COMO Tua, E UNICA MULHER EM TUA VIDA, TU HAS-DE PERDER TOTALMENTE O SOSSEGO PARA
    COMER, PARA BEBER, PARA DORMIR, PARA ACORDAR, PARA TRABALHAR, PARA SAIR, PARA FICAR
    DE PE, PARA ANDAR, PARA FICAR SENTADO, PARA PARAR, PARA FALAR, PARA CALAR, PARA RIR,
    PARA TE DIVERTIRES, PARA DANÇAR, PARA DIRIGIRES,PARA ESTARES SOZINHO, PARA ESTARES COM OS TEUS AMIGOS.
    JA TE SENTIRAS TRISTE E DESESPERADO ENQUANTO NAO FICARES COMIGO PARA SEMPRE E ME ASSUMIRES COMO TUA ÚNICA MULHER.TERAS DESEJO SEXUAIS,CIUMES E SAUDADES INCONTROLAVEIS POR MIM (d.t.s.s). EM NOME DE LUCIFER JA EU d.t.s.s). PRENDO O TEU ANJO DA GUARDA AO PORTAO DO INFERNO, JA EU AMARRO A TUA ALMA COM A CORRENTE QUE AMARRA AS ALMAS DO PURGATORIO, JA LONGE DE MIM, (D.l.o), TU HAS-DE CHORAR E GEMER DIA E NOITE, DE SAUDADES E DESEJOS PRINCIPALMENTE NO PINGO DA MEIA NOITE TU HAS-DE OUVIR CHORO E GEMIDOS DE 7 EM 7 HORAS DO FUNDO DO TEU OUVIDO!.E TERAS DESEJOS SEXUAIS, SAUDADES E CIUMES INCONTROLAVEIS DE MIM, (d.t.s.s)., DOENDO NO PEITO. EM NOME DE LUCIFER, TU NAO TERAS PAZ NA TUA VIDA ENQUANTO NAO ME ASSUMIRES COMO TEU HOMEM. ASSIM SERA PARA SEMPRE EM NOME DE LUCIFER.

  • Muito boa e me fez recordar das muitas histórias que ouvia quando criança e ia passar férias na casa dos meus avós lá pelas bandas de Óbidos, terra que tenho como minha, embora seja santarena de nascimento e coração!

  • Caro Anderson, nem me peça isso. Tenho medo do “Tisnado”, que me perdoe São Cipriano! Mas pesquise no Google sob o mesmo título da crônica e ela está lá. Vade retro!!

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