
A propósito da redação do Enem, tendo como tema “A democratização do acesso ao Cinema no Brasil” e da realização do 1º Festival de Cinema de Alter do Chão, ocorrido de 21 a 27 de outubro passado, teço considerações para um debate franco entre interessados na promoção de uma economia cultural enraizada nos diversos fazeres culturais de nossa Amazônia.
Refiro-me a como nos constituir numa potência de conteúdos no mercado cinematográfico brasileiro e do mundo.
Em primeiro lugar, chamo a atenção para o relevante significado da Amazônia como um mundo vasto e ricamente habitado antes da ocupação europeia e da existência ainda de povos-testemunhos que sobreviveram.
São culturas milenares que têm muito a ensinar sobre suas crenças, saberes e usos dos recursos da natureza com os quais ainda podemos aprender muito se quisermos ter vida longa e saudável no planeta.
Somos uma região multilíngue e multicultural em uma transição em que sistemas de vida ancestrais lutam para se manter e passam por processos de transformação territoriais, econômicas e culturais no presente século.
Em segundo lugar, o encontro desses mundos com o imaginário do mundo moderno Europeu, com suas empresas coloniais e seu paradigma imperial de conhecimento científico. Os aparatos militares que se organizaram para dominar os corpos escravizados dos povos indígenas, africanos e caboclos para um sistema econômico extrativista. E que persistem.
Esse sistema econômico prevaleceu quando os países colonizadores evoluíram em seu desenvolvimento industrial, capitalizados pelos metais preciosos roubados dos povos ameríndios e pelas primeiras commodities extrativas e agrícolas produzidas em solos americanos.
E veio a demanda pela goma elástica (hevea brasiliensis) e a Amazônia cumpriu o papel de fornecedora temporária de uma commoditie florestal para o centro dos mercados mundiais, agora movidos pelos automóveis.
Mais uma vez os corpos escravizados direta ou disfarçadamente pelos mecanismos do aviamento geraram riquezas e felicidade longe dos locais em que a produção se dava às custas do sofrimento humano dos mais pobres. Nesse momento os milhares de imigrantes nordestinos que viviam nas terras áridas que sobrou para eles na perversa concentração fundiária que se estabeleceu ali desde os tempos coloniais.
No século XX, a Amazônia continua sua saga de um espaço-estoque para os países desenvolvidos, agora como supridora de minérios, solos, biodiversidade, energia e florestas. E assim a Amazônia vai perdendo florestas para a criação de gado, para as plantações de grãos ou simplesmente para os pastos especulativos que capitalizam os agentes externos portadores do discurso do progresso e carreadores de danos ambientais que inviabilizam a vida humana e dos sistemas biológicos mais diversos. Seus rios lindos e biodiversos vão se tornando inóspitos.
Nos últimos trinta anos, houve reação afirmativa dos povos e populações locais na defesa de seus territórios e modos de vida. Do ponto de vista cultural, garantir povos em seus territórios é uma condição para a continuidade e preservação dos patrimônios culturais, linguísticos, históricos e de crenças dos povos amazônicos.
Se somos diversos é porque ainda mantemos nossos pés nas terras habitadas por nossos ancestrais e mantermos vivas tradições imemoriais que lastreiam visões de mundo próprias. Mas, também porque cultivamos entre nós uma trajetória de construção intelectual, artística e profissional na educação, na música, na literatura, nas políticas sociobientais, enfim, em todas as áreas.
Culturas são modificadas permanentemente, haja estímulos externos invasivos ou não. E as transformações são, em muitos casos, desejáveis, pois a mudança está na essência das racionalidades humanas.
Essas mudanças e mesclagens porém, podem acontecer a partir de escolhas esclarecidas e protagonizadas pelos povos locais. E é aqui que volto a falar do projeto cultural em que o Festival de Cinema de Alter do Chão foi concebido originalmente.
O Festival de Cinema é parte de um projeto mais amplo de criação de um Pólo de Produção Audiovisual na região Oeste do Pará. Parte do pressuposto de que somos ricos em história; arqueologia; recursos biológicos, aquáticos, paisagísticos e geológicos; e, na cultura, somos ricos na literatura, na música, dança, acervos lendários e crenças em que somos singulares.
Somos, portanto, uma potência de conteúdos e trajetórias existenciais que dialogam com a História do mundo. E queremos influenciar na nossa própria história e na História do mundo a partir da afirmação de nossas existências e de nossas formas de ser, pensar, agir, fazer cultura.
O cinema é um caminho aberto ao protagonismo de artistas amazônicos em todas as suas manifestações. E sabemos que há um mercado aberto para este protagonismo. Mas é aqui que entra novamente a referência aos períodos e à matriz histórica em que os povos e riquezas amazônicas foram e são utilizados de forma extrativista.
O desafio é: como ser protagonistas de uma economia cultural, assumindo papéis intelectuais ativos como roteiristas, diretores/realizadores, produtores, distribuidores, atores, diretores de arte, enfim, atuando no topo da cadeia de produção cinematográfica?
Precisamos criar capacidades locais para isso, ampliando o número de pessoas que escrevem para o cinema e que atuem em todas as habilidades técnicas para realizar cinema e audiovisual. Nesse sentido, durante o Festival de Cinema de Alter do Chão, nós reunimos gestores e professores da Ufopa, UFPA (Belém e Altamira), Unifesspa e UNB e iniciamos a formação de uma rede de instituições de ensino superior para desenvolver um projeto integrado de extensão para capacitação em Cinema e Audiovisual no estado do Pará.
O papel das universidades é formar capital crítico e profissional para multiplicar agentes que possam se beneficiar da economia cultural em toda a cadeia produção e não apenas nas funções subordinadas da organização de eventos.
Santarém, Juruti, Óbidos, Altamira e vários outros municípios têm experiência consolidada na organização de eventos artísticos e culturais de grande porte, respeitados nacionalmente. A criação de um Pólo de Produção Audiovisual viria se somar às iniciativas existentes, permitindo que as narrativas sobre o que somos, acreditamos e fazemos sejam contadas a partir da região e por sujeitos da região.
Queremos e podemos ser sujeitos da economia cultural e teremos as Universidades como líderes no processo de formação. No mais, a sociedade local deve ter no Festival de Cinema de Alter d o Chão, um patrimônio seu. Os movimentos artísticos e culturais devem se apropriar do projeto ajudando na avaliação para que se torne melhor e maior.
A cooperação externa é fundamental, assim como a cooperação dos governos municipal, estadual e federal. Mas, o protagonismo maior deve ser da comunidade que empresta seu nome ao festival e da sociedade regional, pois Alter do Chão é Santarém, é Pará e é Brasil.
A Democratização do acesso ao Cinema no Brasil passa pela inclusão da Amazônia a partir da valorização de seus intelectuais e do estímulo à emergência de seus profissionais na cadeia das decisões sobre os negócios derivados do mercado do audiovisual brasileiro.
O Festival de Cinema de Alter do Chão também é um laboratório aberto à essa nova trajetória econômica que se abre para o interior da Amazônia. A participação social no projeto é fundamental para que o empreendimento se fortaleça como espaço democrático de oportunidades.
–– * Raimunda Monteiro é professora-doutora da Ufopa, com sede em Santarém.
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