por Samuel Lima (*)
As duas principais redes de televisão aberta do Brasil (Globo e Band) têm discursos e categorizações bem distintas sobre o regime e a personagem central, Bashar al-Assad. A Globo o trata cerimoniosamente de “presidente”, enquanto a Band já adotou, há bastante tempo, a alcunha de “ditador”.
Para fins desta breve reflexão, vamos observar como o fato foi noticiado no emblemático dia 15 de março, um ano após o começo das manifestações populares contra o regime al-Asad.
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Por ora, há divergências quanto ao número de vítimas: ONGs e entidades de oposição trabalham com o número de 8,5 mil sírios mortos pelas tropas leais ao ditador, desde março de 2011, enquanto a Cruz Vermelha Internacional e as Organizações das Nações Unidas (ONU) trabalham com dados de 7,5 mil mortos nas províncias de Homs, Hama, Idlib, Aleppo, Deraa e na capital Damasco. A população e as forças de oposição ao regime reivindicam reformas políticas e a renúncia do ditador Bashar al-Assad.
Os discursos dos telejornais
“A revolta popular por liberdade política na Síria completa um ano com um saldo trágico. A repressão aos opositores do ditador Bashar al-Assad (grifo nosso). deixou até agora – segundo a ONU – mais de oito mil mortos”, enunciou o apresentador Ricardo Boechat na edição de 15/03. O telejornal da Rede Bandeirantes assume um número que é da oposição ao regime de al-Asad.
A narrativa da correspondente da emissora na Europa, Sônia Blota, não deixa dúvidas quanto ao posicionamento da emissora (na mesma edição):
Repressão violenta. Essa é a tática usada pelo regime da Síria para enfrentar sua Primavera Árabe. A onda de revoltas populares no Oriente Médio e no Norte da África derrubou longas ditaduras no Egito, na Líbia, no Iêmen e na Tunísia. Depois que os protestos tomaram as ruas sírias e viraram alvo principal das tropas do ditador Bashar al-Asad, soldados do exército começaram a desertar e se uniram num contingente paralelo que tenta enfrentar os militares leais ao governo. (…) Bashar al-Asad lidera o regime sírio há 11 anos. Ele substituiu o pai Hafez que tomou o poder em 1963. (https://migre.me/8lvC7)
Enquanto isso, no Jornal Nacional (TV Globo, ed. 15/03/12), na mesma noite, o fato era contado com outro viés político. A reportagem foi assim enunciada pelos jornalistas Patrícia Poeta e Márcio Gomes: “O movimento popular que exige a renúncia do presidente da Síria, Bashar al-Asad, completou hoje um ano. Segundo a ONU, mais de 8 mil pessoas foram mortas na repressão (grifo nosso) aos opositores.”. O texto de Carlos de Lannoy, que cobre o conflito a partir de Jerusalém (Israel), reforça esse enfoque:
Um dos redutos da oposição, a cidade de Hama, não celebrou o aniversário do movimento anti-Bashar al-Asad. Ela foi bombardeada pelas tropas do regime. Em Holms, muitos tiros foram ouvidos. Já a TV estatal mostrou milhares de pessoas em Damasco, numa grande manifestação de apoio ao presidente (grifo nosso). Opositores disseram que estudantes e servidores foram coagidos a participar da manifestação, que ocorreu um dia depois da revelação de e-mails supostamente enviados pela família Assad (https://migre.me/8lvHD).
Note-se que al-Asad continua tendo o tratamento de “presidente”, tanto no enunciado quanto na reportagem. Os oito mil mortos denunciados pela ONU, para os jornalistas da TV Globo foram vítimas da “repressão aos opositores” – por um sujeito indefinido, resultado de exercício retórico que tem uma clara intenção: sublimar a responsabilidade política da ditadura.
Neste caso, temos um mesmo fato político sendo reportado a partir de dois olhares sobre o núcleo central da notícia: a repressão do regime de Bashar al-Asad aos seus opositores. No âmbito da ONU, a ditadura se ampara nos vetos da Rússia e China às sanções do Conselho de Segurança.
Nas telas dos dois principais telejornais do país, exemplos claros de tipos de representação sóciopolítica da notícia, essa matéria-prima tão essencial ao jornalismo como forma social de conhecimento que pode revelar pistas da dimensão histórica dos fatos, a partir do singular da vida, ou fazer um discurso totalmente estranho à verdade factual.
Na metáfora sobre a “verdade”, o poeta Carlos Drummond de Andrade a percebe como algo formado por duas metades que não se encaixam e vaticina: “Chegou-se a discutir qual a metade mais bela/ Nenhuma das duas era totalmente bela./ E carecia optar. Cada um optou conforme/ seu capricho, sua ilusão, sua miopia”. Os dois telejornais fizeram suas escolhas…
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* Santareno, é docente da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). Professor-visitante do curso de jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS.