
Houve um momento da aventura humana na Terra que a Ciência não era um edifício de aço, regulamentos e credenciais, era um campo aberto onde a trajetória pessoal se confundia com a descoberta. Ia-se além das cátedras, dos laboratórios repletos de vidrarias cintilantes, pulsava a chama íntima da “curiosidade” que relutava a morrer e ser esquecida sem o aval da academia.
Benjamin Franklin, com seus experimentos elétricos improvisados; Michael Faraday, que saíra de uma oficina de encadernação para redefinir o magnetismo; Mary Anning, que extraía da pedra bruta os fósseis que redesenharam a paleontologia; ou Darwin, que embarcou no Beagle como um amador e regressou como o arquiteto da evolução. Todos eles personificam essa aliança entre paixão e intuição, em que a ousadia individual podia sozinha alterar o curso do pensamento humano.
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- A distância pode impedir um abraço, mas nunca um Pix.
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Jane Goodall foi um sopro tardio desse espírito quando o progresso do século XX já havia encarcerado a ciência dentro de instituições, comitês e protocolos. Sem diplomas de prestígio e influenciada por Louis Leakey , viajou para a Tanzânia para observar os chimpanzés com um olhar que não cabia nos manuais, deu-lhes nomes, reconheceu personalidades, atribuiu-lhes cultura.
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Com seu gesto metodológico particular, deslocou o humano do pedestal e obrigou a Ciência a admitir que a fronteira entre nós e os outros animais era mais porosa do que se supunha. Por isso e por seu conservacionismo ambiental, Goodall foi a última grande autodidata a insurgir contra o conformismo acadêmico, introduzindo o gesto delicado e radical de olhar de outro modo a ideia de humanidade.
Porque a “última”?
À medida que o fazer científico se tornou academicista e associado a titulação, o lugar do autodidata foi gradualmente sufocado pela engrenagem social que fez da Ciência uma máquina de produção controlada, regulada e avaliada por filtros intermináveis. A institucionalização trouxe avanços inegáveis, a precisão, o rigor, a cooperação internacional, e em contraponto, ergueu junto de seus ganhos, muros invisíveis que separam a curiosidade bruta da legitimidade acadêmica. Muros que separam até hoje a Sofia e a Episteme.
Editais, comitês e métricas passaram a selecionar os temas “dignos” de investigação, assim como as formas de olhar, de perguntar, de ousar; o “gênio solitário”, aquele que emergia das margens deixou de ser visto como possibilidade, tornando-se um “divergente” incompatível com a lógica da especialização extrema.
Algo vital se perdeu, a capacidade de deixar-se surpreender por aquilo que escapa ao previsto, de acolher o olhar não conformado, de reconhecer que a Ciência também se alimenta da inquietação indisciplinada. Ao interditar o autodidata, a Ciência moderna reforçou sua ortodoxia, empobreceu sua substância, perdeu a centelha de criatividade que brota de perspectivas não domesticadas.
O olhar estrangeiro, livre das convenções, via onde os especialistas viam apenas margens inúteis; intuía caminhos que o academicismo não ousava trilhar. Hoje, mais eficiente e globalizada, a Ciência tornou-se mais tímida, prefere a segurança das engrenagens ao risco da imaginação; paradoxalmente, envelhece em maturidade intelectual ao mesmo tempo em que se expande em poder técnico.
A Ciência moderna já não se deixa capturar pelo espanto que escapa às previsões, aquele tempo em que o inesperado era acolhido como centelha criadora, quando a experiência solitária e improvisada podia moldar os rumos do conhecimento se desfez no ar como bruma. Precisamos lembrar que naquele horizonte iluminista e industrial, o gesto de erguer um papagaio metálico em meio à tempestade (Benjamin Franklin) ou de manipular fios e imãs em oficinas artesanais (Michael Faraday) não era visto como excentricidade, mas como vocação natural do espírito que buscava desvendar os segredos da Natureza.
O “novo” surgia como promessa e destino, a ousadia experimental carregava a convicção de que o mundo estava aberto ao olhar curioso de qualquer indivíduo suficientemente obstinado e disposto a guiar a humanidade para caminhos melhores. Esse impulso individual correspondia a uma atmosfera coletiva em que a sociedade ansiava por progresso.
As descobertas que brotavam de pedreiras ou falésias isoladas (Mary Anning), revelando fósseis de criaturas monstruosas soterradas há milhões de anos transpunham as curiosidades geológicas, representavam a confirmação simbólica de que o tempo humano podia ser ampliado, estendido até abarcar eras inimagináveis.
O que parecia acidente da natureza tornava-se argumento de uma nova história da Terra, uma narrativa que desmontava dogmas religiosos e redesenhava a própria ideia de origem. A Ciência permeável ao improviso e ao gesto solitário encontrava eco em uma cultura que via no desconhecido uma oportunidade de recomeço.
Nesse contexto, mesmo o olhar de um viajante amador diante das vastidões oceânicas e das paisagens exóticas, podia germinar em teoria capaz de redefinir o lugar da humanidade na Natureza (Charles Darwin). Os muros do academicismo não bastavam para interditar a intuição, a experiência do mundo atravessada pelo espanto e a dúvida bastava para inaugurar um novo paradigma.
O século XVIII e XIX se alimentavam de um espírito de época, uma crença de que a História avançava pelo ímpeto dos descobridores solitários, de que o progresso era destino coletivo e uma vocação individual num ambiente cultural que o imprevisto era um motor legítimo da Ciência.
O vigor criador da Ciência esteve durante muito tempo associado à coragem de acolher o que não se enquadrava, era na escuta das vozes marginais, na atenção ao detalhe estranho ou na intuição que rompia métodos consagrados que se abriam novas rotas de pensamento. A inquietação como desordem fértil constituía a própria condição de possibilidade para que o saber se reinventasse.
O risco de errar era inseparável do risco de descobrir e esse pacto silencioso entre dúvida e ousadia sustentava a legitimidade de experiências que, por mais rudimentares ou improváveis podiam transformar-se em fundamentos de novos campos. Essa força brotava de subjetividades capazes de apostar no improvável, no gesto de nomear o que ainda não tinha lugar, de formular hipóteses a partir do assombro ou de insistir no detalhe que os especialistas desprezavam.
Isso inaugurava novas disciplinas, novas formas de humanidade, que a Ciência respirava com imaginação, com a coragem de ver além do visível, confundindo-se com a necessidade de ampliar os horizontes da própria existência. Nessa intersecção entre erro, espanto e criação residia o caráter mais humano da investigação científica, a razão que não excluía a paixão e ambas cresciam uma na outra.
Ao soterrar esse espaço e submeter-se à previsibilidade de métricas, calendários e ortodoxias, a Ciência contemporânea renuncia à dimensão que lhe conferia vitalidade, pois em nome da segurança dos resultados prefere-se o cálculo à intuição, a repetição ao risco, a obediência à desordem criativa. O imprevisto, antes visto como semente do vir-a-ser, torna-se ameaça à estabilidade institucional.
E com isso, a Ciência ganha eficiência, logo perde ousadia; conquista poder técnico à medida que se distancia de sua própria condição de aventura intelectual. O que se extingue não é a figura do autodidata, sim a possibilidade da mesma de reconhecer que o conhecimento floresce também daquilo que escapa, resiste e insiste em não caber na ordem.
E neste momento de grande exaustão técnica e de aumento da produção cientifica mundial, precisamos refletir sobre o “olhar estrangeiro” que permeia o fazer científico, retomar a liberdade das convenções e da capacidade de enxergar horizontes onde a Ciência acadêmica vê ruínas ou becos sem saída. Porque, ao recusar as fronteiras artificiais que separam saberes, esse olhar não se deixava intimidar pela falta de credenciais, vê na margem um laboratório, na exceção uma regra possível, no detalhe aparentemente banal a chave de uma revolução.
Enquanto o academicismo caminha com cautela, consolidando verdades provisórias, esse olhar desobediente intui atalhos, desbrava territórios e, sobretudo, ousa formular perguntas que a Ciência institucionalizada não quer escutar. O século XX foi marcado pela consolidação da Ciência como carreira institucionalizada, no entanto, não impediu a emergência de figuras que desafiavam o consenso, e é daí que precisamos partir nossas reflexões ilustrativas.
Elas surgiram como pontos de inflexão, resistindo ao fluxo dominante que exigia credenciais e legitimidade acadêmica para validar qualquer descoberta. Eram trajetórias que se forjavam na solidão e na insistência, e que por isso mesmo revelavam a fragilidade da ideia de que apenas grandes laboratórios ou comitês poderiam produzir conhecimento legítimo.
Essas existências marginais funcionaram como um lembrete incômodo de que a Ciência continuava se alimentando do imprevisto, a originalidade transpassou o rizoma, instaurou rupturas duradouras, que ao operar sem os filtros da tradição puderam propor conexões inesperadas, abrir caminhos metodológicos inexplorados e recolocar perguntas que a própria academia havia declarado irrelevantes.
A criatividade, em vez de sufocar-se na estagnação, encontrava na recusa das normas um solo fértil para florescer, o gesto de insistir no detalhe desprezado, de olhar para aquilo que não tinha “valor científico”, era precisamente o que permitia romper o círculo de repetições estéreis que o discurso oficial produzia.
As descobertas vindas da margem carregavam um poder de subversão que excedia os limites do campo científico, questionavam teorias estabelecidas, expunham as estruturas de exclusão que começavam a dominar o ambiente acadêmico, cada conquista tornava evidente que a autoridade da Ciência se sustentava em seus métodos e em um regime de pertencimento.
Ao provar que era possível criar fora das fronteiras autorizadas, essas figuras limítrofes deixaram claro que a vitalidade do conhecimento depende tanto da disciplina quanto da coragem de violá-la. O caso do matemático indiano Srinivasa Ramanujan (1887 – 1920) que vindo de uma formação fragmentária, produziu fórmulas e teoremas que ainda hoje desconcertam especialistas, revela a força da intuição livre das convenções.
Sua obra nasceu de uma relação intimista com os números, como se eles lhe fossem revelados em estado bruto, sem a mediação dos métodos oficiais. O encontro com a matemática europeia não apagou esse traço, ao contrário, deixou claro que a vitalidade da Ciência se alimenta justamente de vozes que surgem de fora, portadoras de uma gramática própria.
De modo semelhante, o engenheiro Nikola Tesla (1856–1943) que abandonou os bancos universitários e se lançou em invenções que pareciam delírios para sua época mostrou que a experimentação não conformada podia antecipar o futuro. Correntes alternadas, bobinas e sonhos de transmissão sem fio nasceram de uma imaginação que preferia arriscar a repetir. Sua trajetória demonstra como a ciência se torna fértil quando abre espaço para a fantasia criadora, ainda que esta desafie as fronteiras entre genialidade e excentricidade.
Assim, Barbara McClintock (1902–1992), quando suas observações sobre a mobilidade genética, vistas como “heresia”, só muito mais tarde foram reconhecidas como antecipação de um campo inteiro. Sua insistência em permanecer fiel ao fenômeno observado e contra as leituras hegemônicas, mostrou que a inquietação indisciplinada é fidelidade a uma verdade ainda invisível para os olhares “treinados demais”, sua marginalidade se converteu em força de ruptura capaz de reposicionar toda a genética.
Já na encruzilhada entre matemática, lógica e engenharia, Claude Shannon (1916–2001) pensou a comunicação como código, de traduzir ruídos em estrutura e de enxergar a linguagem das máquinas como prolongamento do humano, inaugurando uma nova área cientifica e uma nova forma de compreender a modernidade quando recusou as delimitações rígidas, mostrando que a ciência mais criativa é aquela que ousa caminhar pelos corredores vazios entre campos de saber.
Mesmo com exemplos de grande valor baseados no “olhar estrangeiro” capaz de cruzar fronteiras e intuir conexões invisíveis, ao longo do século XX essa forma de fazer Ciência tornou-se cada vez mais um incômodo para um Sistema que buscava uniformidade e previsibilidade. A consequência foi a lenta expulsão de modos de pensar que não se enquadravam na lógica institucionalizada, como se a Ciência só pudesse nascer do que já estivesse previamente legitimado.
Em status de “proibição”, a “intuição” se atreveu a desafiar os métodos, a “imaginação” se infiltrou no rigor das disciplinas, surgiram descobertas que revelaram a insuficiência das molduras acadêmicas. Esse contraste mostra que o progresso científico é fruto da eficiência acumulada, da capacidade de acolher o que desarruma. A história demonstra que, sem esse espaço para o “inesperado”, a Ciência corre o risco de reduzir-se a uma máquina de repetição incapaz de dar saltos qualitativos.
Assim, mesmo à medida que a Ciência se transformava em profissão, cercada por diplomas, editais e métricas de produtividade, e a ousadia solitária sendo sufocada, essas trajetórias marginais permaneciam como lembretes de que a vitalidade do conhecimento não está restrita à técnica refinada, sendo valido incluir no processo a coragem de explorar regiões negligenciadas, habitar as bordas, transformar silêncio em hipótese, intuição em caminho.
O olhar deslocado, longe de ser ruído, é o elemento que reintroduz o humano em um campo cada vez mais tomado pela mecânica institucional, sem ele, o risco é condenar a criatividade e a própria maturidade intelectual que faz da Ciência uma aventura de sentido.
E, o que podemos aprender humanamente da trajetória de Jane Goodall (1934 – 2025)?
Sua trajetória demonstra é que a Ciência não precisa ser apenas um exercício de distanciamento, o conhecimento pode emergir de uma convivência prolongada, de uma escuta paciente dos ritmos da vida que se deseja compreender. Ao permanecer anos entre os chimpanzés, acompanhando gerações inteiras em seu cotidiano, Jane instaurou uma temporalidade diferente para a pesquisa, o tempo lento da observação atenta em que cada gesto, cada olhar e cada relação social ganhavam densidade.
Campo sensível ao detalhe, ao micro, ao aparentemente banal que, sob o olhar cuidadoso, revelava estruturas profundas, ao atribuir nomes e reconhecer histórias individuais entre os animais, ela instaurou uma dimensão moral na prática científica, deslocando o objeto de estudo para o território do sujeito, trouxe à luz dimensões que só se revelam quando há reconhecimento de alteridade.
Ao unir rigor empírico e responsabilidade ética, Jane indicou que a fronteira entre ciência e humanidade não é uma linha rígida, sim um espaço de passagem onde o saber se torna também cuidado. No momento em que escolheu contrariar o paradigma dominante, optando por uma ciência que se deixava afetar, ela mostrou que o futuro do conhecimento se mede pela coragem de reinventar suas próprias regras de engajamento com o real, aberta ao risco do inesperado e disposta a reconhecer que em cada ser vivo há uma história digna de ser contada.
O gesto inaugural não depende de diplomas consagrados ou do prestígio das cátedras, mas da disposição em observar o mundo de forma radicalmente atenta, a persistência em permanecer à margem, assumindo uma posição não autorizada, produz um deslocamento capaz de reformular o modo como se compreende as fronteiras.
A lição é clara, quando o saber nasce da escuta paciente e da coragem de experimentar, ele encontra forças para prolongar sua existência, esse deslocamento paradigmático é possível porque o olhar de fora está livre das convenções que a academia naturaliza. A condição de não-pertencimento transforma-se em potência, pois permite perceber que o rigor não precisa excluir a imaginação, e que a neutralidade não deve implicar indiferença.
O que emerge é a prova de que a Ciência para continuar viva, precisa cultivar a arte da desobediência discreta, não se trata de negar a disciplina, o rigor, a cooperação, o método, sim de resistir à domesticação dos olhares que só confirmam o que já está previsto. A imaginação científica floresce quando encontra espaço para essa delicada insurgência, que se anuncia como ruptura lenta, como abertura paciente a outras possibilidades de realidade, lembrando que o ato de conhecer exige o risco de não se conformar.
BBC (2025)
O passado nos legou lições, os séculos XVIII e XIX mostraram que a Ciência podia brotar do improviso e da obstinação individual, da chama solitária que se permitia errar e nesse erro encontrar a revelação. Já o século XX testemunhamos a resistência de algumas figuras que, mesmo cercadas pela institucionalização crescente, insistiram em manter viva a inquietação criadora. Esses dois momentos históricos, distintos mas conectados, deixam entrever que a vitalidade do conhecimento sempre dependeu menos da forma de organização e mais da coragem de quem ousava atravessar fronteiras.
O nosso presente inaugura um desafio mais complexo, de devolver à Ciência a condição de linguagem pública, capaz de atravessar barreiras disciplinares, culturais e políticas. Em tempos marcados por desinformação e pela colonização tecnológica do cotidiano, pensar a Ciência como bem comum é reconhecer que ela pertence à vida coletiva, pois uma ciência reduzida a instrumento técnico perde a capacidade de dialogar com a sociedade, torna-se poderosa, mas incomunicável, ineficaz em sua vocação humana.
É nesse horizonte que se inscrevem as obras mais instigantes da última década, cada uma delas reiterando a seu modo a urgência de manter vivo o frescor do olhar não conformado. Essas vozes lembram que a Ciência não é só método, é narrativa; não é só rigor, é imaginação; não é apenas previsão, é também espanto.
Ao propor novas formas de compreender o cosmos, a mente e o social, esses autores reafirmam que o conhecimento continua a precisar da ousadia que um dia foi atributo dos autodidatas e que hoje deve se reconfigurar como prática coletiva, resistente às ortodoxias e aberta ao inesperado.
Em The Big Picture (2016), Sean Carroll formula o que chama de “naturalismo poético”, uma visão em que a ciência ultrapassa o mero acúmulo de técnicas e dados para se tornar narrativa capaz de oferecer sentido e encantamento. A proposta é compreender o universo como sistema, como história que nos inclui num enredo em que a racionalidade se alia à sensibilidade estética, Carroll recupera a dimensão humanista da ciência, lembra que o rigor não precisa excluir a imaginação, e que o conhecimento se fortalece quando fala também à nossa necessidade de significado, de existir com sentido.
Essa intuição se prolonga em Até ao fim dos tempos (2021), de Brian Greene, que articula cosmologia, evolução e cultura para mostrar que entender o cosmos é igual compreender a finitude humana. Greene insiste que olhar para as vastidões do espaço e para o destino final da matéria é olhar para nós mesmos e reconhecer a precariedade que nos constitui. Ao fazê-lo, sugere que a Ciência só se mantém viva quando preserva a centelha de maravilhamento que um dia animou os autodidatas, incentiva buscar aquele impulso por respostas técnicas, horizontes de sentido que libertem o conhecimento do risco de se tornar engrenagem sem alma.
Em Existential Physics (2022), Sabine Hossenfelder alerta para o risco da Ciência deslizar para o território da especulação vazia, quando hipóteses sem lastro empírico passam a ocupar o espaço do rigor metodológico. Para ela, não basta fascinar com cenários de multiversos ou simulações cósmicas, é preciso preservar a responsabilidade de que a ciência só cumpre sua função quando se ancora em evidências, devendo permanecer vinculada à experiência, sob pena dela se tornar mais mito do que investigação.
Observação que ecoa em Rationality (2021), de Steven Pinker, que afirma a necessidade de recuperar a razão como prática pública, raciocínio lógico, estatística e probabilidade não são ferramentas restritas a especialistas, mas instrumentos que deveriam compor a vida cívica cotidiana. A ciência, nessa perspectiva, funciona como exercício coletivo de discernimento, distinguir o que se apoia em dados sólidos daquilo que não passa de fantasia, é exatamente aí que a racionalidade se torna antídoto contra o fanatismo
Em Everything All at Once (2017), Bill Nye retoma a curiosidade como motor de transformação coletiva, propõe uma pedagogia da ousadia que convida a explorar, arriscar e experimentar como se cada problema fosse enfrentado pela primeira vez. Esse impulso, que ecoa o espírito criativo dos antigos autodidatas se expande como prática social, aprender Ciência é também aprender a participar da vida pública com imaginação, responsabilidade e coragem para inovar, a curiosidade como força cívica; Ciência como engajamento cotidiano.
Essa mesma linha encontra expressão em Natália Pasternak e Carlos Orsi, com Ciência no Cotidiano (2020) e Contra a Realidade (2021), as obras apresentam a Ciência como prática de cidadania, um antídoto contra pseudociências e narrativas conspiratórias que corroem a racionalidade da participação social e do debate público. Mais do que difundir conceitos, Pasternak e Orsi propõem uma atitude crítica diante do mundo, em que cada indivíduo assume a responsabilidade de avaliar informações com rigor e discernimento. Nesse quadro, o “olhar estrangeiro” não é exclusividade da figura solitária do gênio, mas uma tarefa de toda a sociedade, pois reaprender a olhar criticamente é condição para preservar o espaço comum da verdade.
Mas, por quê?
Quando Neil deGrasse Tyson afirmou, em entrevista ao El País em 2016, que “o próximo Einstein pode estar agora mesmo passando fome na África”, ele não buscava efeito retórico, denunciava uma ferida aberta, o modo como o sistema educacional e a estrutura social condenam ao silêncio inteligências que poderiam transformar nossa compreensão do mundo.
A frase é um alerta contra a arrogância de uma Ciência que se considera universal, que permanece cega para as desigualdades que impedem muitos de sequer entrarem no jogo. Ao mesmo tempo, é também uma crítica ao ensino que domestica a curiosidade, que exige memorização em vez de imaginação, obediência em vez de risco, conformidade em vez de ousadia.
Nos países mais pobres, sobretudo na América Latina, especialmente na Amazônia brasileira, o que está em jogo é a ausência de condições estruturais que permitam os talentos florescerem. Crianças que poderiam ser cientistas, inventores ou pensadores são forçadas desde cedo a encarar trabalhos precários, a lidar com escolas sem professores, currículos frágeis, ou mesmo a abandonar a educação para garantir a sobrevivência da família.
Nesse cenário, a curiosidade como motor silencioso que moveu os grandes rebeldes da ciência é podada antes mesmo de amadurecer, transformando-se em urgência imediata por renda e sustento. A raiz do problema vai além da pobreza imediata, está incrustrada nos modelos de Estado e de Nação que historicamente relegaram a periferia a um papel de fornecedora de recursos e mão de obra barata.
No caso da Amazônia, isso se traduz em territórios onde a escola é frágil, a pesquisa é marginalizada e a juventude cresce entre a riqueza natural e a precariedade social. O que poderia ser laboratório de descobertas planetárias se torna espaço de exclusão, em que potenciais “Einsteins” passam fome e carregam um peso histórico do silenciamento e da invisibilidade.
Nessas condições, a Ciência perde indivíduos criativos e a possibilidade de se reinventar a partir de olhares que nasceriam de outras realidades mais plurais e mais vivas. Porque a Amazônia carrega de maneira explícita as marcas de uma herança colonial que ainda estrutura o modo como o conhecimento é produzido e legitimado.
Desde o período da conquista, o território foi visto como espaço de extração e saque, um grande depósito de recursos a serem explorados para atender interesses externos, essa lógica persiste na contemporaneidade, quando as universidades da região são subfinanciadas, os projetos de pesquisa sofrem descontinuidade e os saberes locais são sistematicamente desconsiderados em nome de agendas científicas impostas de fora.
A estrutura do Estado brasileiro construída sobre modelos centralizadores e excludentes, pouco investiu em transformar a Amazônia em sujeito de produção intelectual. O resultado é um ciclo em que a Região continua fornecendo riquezas naturais, permanecendo marginalizada na produção de riqueza científica.
Esse processo é expressão clara de um epistemicídio cientifico, pois há o apagamento deliberado ou silencioso de sistemas de conhecimento que não cabem na matriz ocidental dominante. Povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais, com seus modos próprios de interpretar e manejar a floresta, são tratados historicamente como atrasados, folclóricos ou meros informantes, quando, na verdade, detinham chaves sofisticadas de compreensão da biodiversidade e do equilíbrio ecológico.
Ao invisibilizar essas vozes, a Ciência institucional não apenas perde diversidade de perspectivas, também amputa sua própria capacidade de inovar, já que o epistemicídio cientifico na Amazônia é uma violência contra culturas específicas, uma perda global que priva a humanidade de futuros possíveis nascerem de interpretações locais e adaptadas culturalmente.
Essa denúncia encontra eco na advertência que atravessa todo o percurso deste artigo, sem a coragem de desobedecer às convenções no método, no pensamento, na vida pública, a Ciência corre o risco de transformar-se em uma máquina espiritualmente empobrecida. Não basta dispor de tecnologia de ponta ou de vastas redes de financiamento; se não houver espaço para o olhar deslocado, para a voz que vem da margem, para o gesto que insiste em perguntar o que parecia proibido, a Ciência se condena à repetição estéril.
Tyson lembra que o gênio solitário de hoje pode estar impedido de existir não por falta de ideias, mas porque o sistema lhe nega alimento, oportunidade e dignidade se reproduz à larga escala, onde o argumento da pobreza e da miséria campeia os pensamentos e as condutas dos nossos governantes sedentos por votos e obediência.
É nesse ponto que o legado dos que ousaram olhar de fora ressoa com força, advertência viva, porque cada autodidata é voz não conformada do conhecimento que floresce no inesperado, na fratura, naquilo que parecia ruído. Se o próximo Einstein está passando fome, a responsabilidade é social e epistêmica, significa que a Ciência, ao recusar a desobediência criadora e ao aceitar a exclusão como normalidade, abre mão de seu próprio futuro.
Reconhecer essa condição é o primeiro passo para devolver à Ciência o que ela tem de mais humano, a capacidade de surpreender-se e reinventar-se. Ao longo deste percurso vimos como os autodidatas, com sua inquietação indisciplinada, foram capazes de transformar o horizonte do conhecimento humano.
Eles surgiram como figuras isoladas, como expressão de uma época em que a curiosidade não estava cativa das engrenagens institucionais, Franklin, Faraday, Anning, Darwin ou Ramanujan são lição histórica, um lembrete de que a Ciência já foi permeável ao olhar estrangeiro, e que essa permeabilidade foi condição de sua vitalidade.
No entanto, a modernidade científica em sua ânsia de profissionalização, criou filtros que se tornaram barreiras, a rigidez dos métodos, a burocratização dos sistemas de ensino e a lógica produtivista dos laboratórios acabaram por excluir as vozes marginais que tantas vezes ofereceram os maiores saltos de imaginação.
Jane Goodall, em seu deslocamento, mostrou como ainda era possível insurgir suavemente contra a ortodoxia, quanto esse gesto se tornou raro e improvável. O risco, como apontava Tyson em 2016, é que a próxima grande inteligência esteja impedida de florescer não por falta de condições humanas mínimas para existir.
Carroll, Greene, Hossenfelder, Pinker, Nye, Pasternak e Orsi reforçam que essa crise é cultural e política, todos, em registros distintos, convergem para uma ideia comum, a ciência só sobrevive como aventura humana se for capaz de manter o frescor da curiosidade, o rigor aliado à imaginação e o ceticismo como defesa contra ilusões.
Trata-se de valorizar o inesperado, a dissonância, o olhar que não se encaixa; a Ciência precisa novamente se tornar linguagem pública, narrativa compartilhada, prática cidadã. O desafio é reabrir o horizonte do que ainda pode ser pensado, reconhecer a perda de espaço para o imprevisto, para o estrangeiro, para o dissidente, não é um exercício de nostalgia, é um gesto de responsabilidade com o futuro.
Só ao admitir que se tornou máquina espiritualmente empobrecida, a Ciência poderá reencontrar sua condição mais humana, a de surpreender-se e reinventar-se. É essa reinvenção que definirá o fazer cientifico e o destino da humanidade que nela procura compreender a si mesma como existência com sentido, com organicidade.
❒ Josué Vieira, santareno, é professor, escritor, poeta e pesquisador sobre Sociedade, Cultura e Amazônia. Mora em Manaus (AM). Leia também dele: Katy, um reino além da consciência. E ainda: Desesperos, morte e silêncio na Colônia Vertical dos Perdidos.
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