Daqui pra frente, é só pra trás. Por Josué G. Vieira

Publicado em por em Opinião, Saúde

Daqui pra frente, é só pra trás. Por Josué G. Vieira
Na pós-pandemia, "acenava-se com a ideia de que dali em diante a saúde pública seria fortalecida". Fotos: reprodução

Se alguém recorda, prometeram-nos que a pandemia seria um divisor de águas, um corte profundo na carne da história, nos obrigaria a redesenhar os contornos da vida coletiva. Os discursos oficiais e nas manchetes entre 2020 e 2022, acenava-se com a ideia de que dali em diante a saúde pública seria fortalecida, que a saúde mental deixaria de ser apêndice invisível e passaria a ocupar o centro das políticas sociais, a prevenção seria erguida como prioridade de Estado.

Como herança, ficou: “nada voltará a ser como antes” … E de fato não voltou, porque 3 anos após o “reinicio da normalidade” o que se ergueu sobre as ruinas foi uma realidade fraturada, híbrida entre avanços tecnológicos e velhas negligências, a esperança de transformação estrutural foi rapidamente engolida pela pressa em restaurar a rotina, o “novo normal” fez-se menos revolução e mais disfarce, envernizamos as mesmas desigualdades e omissões que já nos adoeciam.

Leia também de Josué G. Vieira:

Cabe lembrar que o “novo normal” acenava para todos como uma promessa lírica de otimismo, baseada num tempo racional, progressista, em que a ciência guiaria os passos da sociedade como um farol. Assim como nas páginas densas e intimas de Tolstói, o épico se dissolveu no miúdo, não houve redenção coletiva, sim abriu-se um abismo entre aqueles que podem pagar pelo cuidado imediato e os que se veem condenados a esperar meses numa fila, como se a saúde pública e privada tivesse se tornado um romance de longas esperas e promessas não cumpridas.

Nos corredores lotados dos hospitais, o cartaz amarelado que ainda recomenda máscara é símbolo desse conjunto de promessas não cumpridas; se para uns, a pandemia acabou com a vacina; para outros, ela segue viva em consultas perdidas, em crianças não vacinadas, em trabalhadores afastados por depressão, ansiedade e burnout. Enquanto a ciência produziu em tempo recorde imunizantes e estudos de ponta, a sociedade se mostrou incapaz de transformar esse avanço em bem-estar coletivo.

É, “o homem acostuma-se a tudo, o canalha” diz Dostoiévski em “Crime e Castigo”, e habituados, fomos lentamente aceitando filas intermináveis de meses para conseguir uma vaga em um CAPS, à escalada silenciosa dos quadros de ansiedade entre jovens que mal iniciaram a vida adulta, às campanhas de vacinação que se arrastam sem alcançar as metas mínimas para proteger a coletividade.

O que um dia soou como ruptura histórica transformou-se numa rotina opaca de descuido e esquecimento, a pandemia havia nos oferecido lições duras como quem reaprende a andar em terreno instável, só que depressa nos treinamos a ignorá-las, a conviver com o risco como se fosse pano de fundo da vida cotidiana.

No mundo e diante de nós, no Brasil, temos paralisado dois fantasmas, a memória ainda palpitante do trauma e a encenação de uma normalidade que nunca se realizou por inteiro. A promessa de mudança foi cuidadosamente empacotada e guardada na mesma gaveta em que repousam relatórios oficiais e planos de contingência esquecidos.

O “novo normal” revelou-se um oximoro, não é novo, porque repete velhas falhas; tampouco é normal porque se sustenta em fraturas expostas do sistema e da sociedade. No fundo, diria outro capitulo em “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, um escrito sobre políticas incompletas, de esperanças adiadas e de uma aridez que insiste em se perpetuar sob o disfarce de rotina.

Nos primeiros meses do pós-pandemia, acreditou-se que a vitória científica contra a COVID-19 abriria uma era de confiança inabalável nas vacinas. No entanto, a realidade revelou-se frágil, hesitante, quase vacilante como um corpo febril que tenta se erguer após longa enfermidade.

Em 2025, os números voltaram a soar como um alarme incômodo, surtos endemicos se espalharam por diversas partes do mundo, a estatística guarda dentro dela histórias de dor, como de crianças internadas por complicações evitáveis, pais assombrados pela culpa, médicos frustrados diante da reincidência de um inimigo já conhecido. No Brasil, em especial nos Estados que compõe a Amazônia, o risco persiste como sombra que ronda fronteiras e aeroportos, basta um punhado de casos importados para acender a fagulha do contágio em comunidades onde a cobertura vacinal se manteve abaixo do mínimo recomendado. Em muitas cidades, campanhas mal divulgadas se confundem com a apatia da população, e o que deveria ser uma política de Estado transforma-se em batalha local, travada a cada posto de saúde, a cada bairro periférico.

Em 2023, ainda ecoava a ideia de que o sarampo estava sob controle na maior parte do planeta, depois de perder o certificado de eliminação em 2018, o Brasil havia dado passos importantes para reverter a situação, na qual em Setembro de 2024 a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) reconheceu novamente o país como livre da circulação endêmica do vírus, no entanto, esse marco escondia fragilidades, quedas de cobertura em alguns Estados, bolsões de não vacinados e uma onda crescente de desinformação sobre imunizantes.

Enquanto o Brasil celebrava a reconquista do certificado, a Europa registrava em 2024 um salto dramático nos casos, o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) notificou 127.350 ocorrências, o maior número desde 1997, um crescimento explosivo frente às 3.973 infecções de 2023 (https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/measles-annual-epidemiological-report-2024), a Romênia concentrou boa parte desse aumento, que também foram detectados em países vizinhos. A revista Frontiers in Public Health publicou em agosto de 2024 uma análise intitulada “An Alarming Emergence of Measles in Europe” (https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11588923/) descrevendo como falhas vacinais e desigualdades sociais criaram um terreno fértil para o vírus.

Nas Américas, a situação começou a se agravar no início de 2025, tanto é que em fevereiro e março, a OPAS emitiu alertas epidemiológicos (https://www.paho.org/pt/file/2025-epidemiological-alert-measles-february.pdf e https://www.paho.org/pt/file/2025-epidemiological-alert-measles-march.pdf) devido ao aumento súbito de casos. O relatório mais atualizado da Organização Mundial da Saúde indicou que até 18 de abril de 2025 (https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2025-DON566) haviam sido registrados 2.318 casos confirmados e 3 mortes em seis países do continente, Argentina, Belize, Brasil, Canadá, México e Estados Unidos, o número representa aumento de 11 vezes em relação ao mesmo período de 2024.

No Brasil, apesar do status de eliminação do sarampo, casos importados voltaram a aparecer em 2025, principalmente no Tocantins e Rio de Janeiro (https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-03/saude-confirma-casos-de-sarampo-no-rio-e-no-tocantins). O Ministério da Saúde reforçou campanhas de bloqueio vacinal e lançou alertas para manter as coberturas acima de 95%, contudo, relatórios técnicos apontam que há bolsões vulneráveis, especialmente em áreas periféricas urbanas e comunidades mais pobres, onde a hesitação vacinal é amplificada por notícias falsas.

Entre 2023 e 2025, a dengue deixou de ser um fenômeno sazonal para se tornar uma crise sanitária global, no Brasil, 2024 o Ministério da Saúde contabilizou 6,6 milhões de casos prováveis e mais de 6.300 mortes, cifras que colocaram o país no centro da maior epidemia de sua história recente. Segundo a revista Nature, essa escalada é consequência direta do aquecimento global, da urbanização desordenada e da fragilidade dos sistemas de saneamento, fatores que ampliam a proliferação do mosquito Aedes aegypti (https://www.nature.com/articles/d41586-025-02918-8).

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde e a OMS, 12,6 milhões de casos e 7.700 mortes por dengue foram registrados em 2024 (https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2024-DON-dengue), e em 2025 os índices mantiveram-se, no panorama global, a OMS estimou que o mundo ultrapassou a marca de 14 milhões de infecções em 2024, com surtos significativos no Sudeste Asiático (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S120197122500164X); já The Lancet classificou a escalada dessa doença tropical negligenciada como uma ameaça crescente à saúde pública (https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(24)01542-3/fulltext).

O Brasil iniciou campanhas de vacinação com a Qdenga, desenvolveu ações comunitárias de controle do vetor e apostou em estratégias inovadoras, como a liberação de mosquitos infectados com a bactéria Wolbachia. Ao mesmo tempo, cientistas enfatizam a necessidade de vigilância climática como ferramenta preditiva, apontando que os surtos seguirão um padrão cada vez mais associado a fenômenos ambientais extremos. A Nature publicou em 2025 uma análise sobre modelos de previsão baseados em clima, sugerindo que apenas um planejamento integrado entre ciência, políticas públicas e mobilização social será capaz de conter a expansão da dengue no futuro (https://www.nature.com/articles/d41586-025-02677-6).

Entre o final de 2023 e os primeiros meses de 2024, diversos países da Europa registraram uma elevação expressiva nos casos de coqueluche, segundo o relatório da ECDC de 8 de maio de 2024 25.000 casos foram identificados em 2023 na comparação com anos anteriores, e que somente entre janeiro e março de 2024 já se observavam mais de 32.000 casos na União Europeia e no Espaço Econômico Europeu (EU/EEA), algo que rompe o silêncio relativo mantido durante a fase mais aguda da pandemia de COVID-19, quando a circulação de muitos agentes infecciosos diminuiu drasticamente (https://www.ecdc.europa.eu/sites/default/files/documents/Increase%20in%20pertussis-cases-EU-EEA-8%20May%2024%20FINAL.pdf).

Infantes (com menos de um ano) foram os mais afetados, tanto em número de infecções quanto em gravidade das complicações, este aumento foi atribuído a fatores como imunidade enfraquecida por ausência de “reforços naturais” (contágios mais brandos que ajudam a manter proteção coletiva), queda ou atraso nas doses de reforço vacinal, e deficiências nos programas de imunização em determinados grupos populacionais.

Segundo estudo de Liu et al. (2024), na China nos dois primeiros meses de 2024 houve 32.380 casos de coqueluche reportados, quase 23 vezes mais do que o registrado no mesmo período de 2023, apontando uma explosão de intensidade incomum (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0163445324002238). Além disso, pesquisa publicada em 2025 mostra que a cepa dominante incluía linhagens resistentes a macrolídeos, com evidências de que o genótipo ptxP3 ampliou-se e houve um deslocamento de casos para crianças mais velhas e vacinadas, sugerindo que a imunidade conferida pelas vacinas ou pelos contatos naturais não está sendo suficiente para conter a circulação do Bordetella pertussis (https://www.thelancet.com/journals/lanwpc/article/PIIS2666-6065%2825%2900165-8/fulltext).

Estudos hospitalares em Pequim demonstraram o aumento contemporâneo de casos graves entre lactentes, alguns com necessidade de UTI e, em muitos casos, complicações maiores do que em surtos anteriores (https://journalpulmonology.org/en-atypical-surge-hospitalized-severe-cases-articulo-S2531043724000990)

Esses surtos revelam que a coqueluche voltou a mostrar sua capacidade, ressurgindo onde se pensava que estivesse controlada, o declínio temporário de sua circulação durante a pandemia, gerou uma lacuna de imunidade; a imunização de rotina sofreu interrupções, os reforços foram negligenciados e muitos países passaram a conviver com um nível de vulnerabilidade que ficou invisível até que o número de casos disparasse.

Cientistas apontam que, para responder adequadamente, é necessário não só restaurar cobertura vacinal plena, mas também melhorar a vigilância laboratorial e genômica, reforçar programas de vacinas em gestantes, garantir reforços de vacina para crianças e adultos, e monitorar variantes ou cepas resistentes.

No mesmo período, foi observado o ressurgimento alarmante da cólera que ultrapassou fronteiras nacionais, atingindo dezenas de países, o estudo “Global cholera resurgence — a preventable tragedy” publicado em The Lancet Infectious Diseases, revela que, entre 1º de janeiro e 29 de dezembro de 2024, foram notificados 804.721 casos de cólera em 33 países, com 5.805 mortes associadas ao surto, apontando que muitos países afetados são de baixa e média renda, com infraestrutura de água, saneamento e higiene precária, e onde conflitos ou deslocamentos populacionais agravam a vulnerabilidade. (https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099%2825%2900101-X/fulltext?rss=yes)

No início de 2025, dados preliminares da Organização Mundial da Saúde mostram que 31 países já reportavam surtos entre janeiro e agosto de 2025, com 409.222 casos de cólera ou “Acute Watery Diarrhoea” (AWD) e 4.738 mortes, segundo boletim de 29 de agosto de 2025, alguns países apresentaram taxas de letalidade superiores a 1%, indicando atrasos no acesso ao tratamento. Os surtos mais graves e extensos ocorreram em nações como República Democrática do Congo, Sudão, e Sudão-do-Sul, onde deslocamentos, infraestrutura destruída, chuvas intensas ou enchentes e falhas no sistema sanitário criaram condições propícias para a disseminação da doença. (https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2025-DON579)

A literatura científica correlaciona esses surtos com variáveis climáticas, chuvas intensas, secas seguidas de inundações, crises sociais e conflitos, além da escassez de vacinas ou de campanhas de vacinação reativas quando não preventivas. O “Cholera Outbreaks in Low- and Middle-Income Countries in the Last Decade: A Systematic Review and Meta-Analysis” (Microorganisms, 2024) aponta que os países mais pobres têm sido os mais atingidos pela propagação da bactéria, apresentando uma resposta inadequada em termos de WASH e saúde pública (https://doi.org/10.3390/microorganisms12122504).

Desde setembro de 2023, observa-se uma nova onda de mpox associada ao clado Ib que emergiu na República Democrática do Congo, marcando o início de surtos significativos na África Central e posteriormente espalhando casos para outras regiões. Pesquisas descreveram que a variante clado Ib tem evoluído e se adaptado, estudos como “Mpox 2022 to 2025 Update: A Comprehensive Review” (Yadav et al., 2025) (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC12197743/) e “The resurgence of monkeypox virus: a critical global perspective” (Malla et al., 2025) (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC12162720/) apontam que fatores como condições socioeconômicas precárias, migração interna, dificuldades no acesso a diagnóstico e tratamento, além de mutações genéticas, são chaves para entender esse ressurgimento global.

No Brasil, embora o número de casos seja menor em comparação com os focos africanos, há alertas relevantes, no artigo “Confronting Mpox in Brazil amid global spread of clade Ib” (https://www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X%2824%2900244-8/fulltext) informa que no fim de 2024 o país acumulava mais de 12.000 casos confirmados, sendo o segundo com mais casos globais.

Estudo de coorte feito no Rio de Janeiro, “Lessons From the 2023–2024 Mpox Outbreak in Rio de Janeiro” (Silva et al.) (https://academic.oup.com/cid/article/79/3/656/7713692), mostra características clínicas que persistem, pacientes com lesões cutâneas, transmissão predominantemente por contato próximo, com algumas apresentações atípicas, e dificuldades de diagnóstico precoce.

Em 2025, relatórios da OPAS/PAHO indicam que nas Américas em geral, vários países ainda registram casos confirmados ou prováveis de mpox, embora sem necessariamente emergências comparáveis às da África. No artigo “Situation Report on Mpox Multi-Country Outbreak Response” de março de 2025 (https://www.paho.org/sites/default/files/2025-03/sitrep-mpox-24mar2025-final.pdf) mostra que, até o final de fevereiro foram reportados no continente casos em países como Brasil, México, Canadá, entre outros, com números modestos mas suficientes para manter vigilância ativa. Indicando o mpox ameaça latente, principalmente onde há vulnerabilidades sociais, sanitárias, de violência, deslocamentos propícias para reemergência.

Entre janeiro de 2023 e junho de 2024, houve 74 surtos de poliovírus derivado de vacina circulante (cVDPV) espalhados por 39 países ou regiões, totalizando 672 casos confirmados de paralisia flácida aguda (AFP) em 27 desses países. Destes surtos, 47 foram novos no período, detectados em 30 dos 39 países afetados, o que indica não apenas persistência mas expansão geográfica do problema, a maioria dos surtos envolve o cVDPV tipo 2, embora tenham sido detectados também surtos de tipo 1 em locais como República Democrática do Congo, Madagascar e Moçambique. (Update on Vaccine-Derived Poliovirus Outbreaks — Worldwide, January 2023–June 2024 | MMWR)

Em 2024-2025, cresceram as detecções ambientais em esgotos, amostras de água residuais de poliovírus derivado da vacina, especialmente do tipo 2. Um exemplo recente é Israel, que em 2025 confirmou um surto de cVDPV1 pouco após a descontinuação rotineira da vacina oral bivalente (bOPV) no país, embora mantenha uso de vacina inativada (IPV) com cobertura superior a 90%. (Circulating vaccine-derived poliovirus type 1- Israel)

Também na faixa global, as autoridades sanitárias destacam que comunidades com baixa cobertura vacinal continuam sendo o principal terreno para esses surtos, já que o vírus vacinal atenuado pode reaparecer em forma de cepa virulenta onde a imunização de rotina falha. (https://doi.org/10.3390/pathogens13090804)

Especialistas no artigo “Polio Epidemiology: Strategies and Challenges for Eradication” alertam que a remoção coordenada da vacina oral precisa ser feita apenas quando a imunidade populacional estiver acima de patamares seguros, para evitar lacunas que permitam o surgimento de novos surtos cVDPV. Em suma, a poliomielite hoje ressurge de formas derivadas da vacina, por isso continua a representar risco real, especialmente em contextos de vulnerabilidade e infraestrutura vacinal precária.

A lição mais dura desse contexto é que a ciência pode avançar em velocidade vertiginosa, mas a confiança social anda a passos lentos, no mesmo país em que pesquisadores desenvolvem vacinas de mRNA contra vírus emergentes, ainda há mães que hesitam diante da agulha, contaminadas por ondas de desinformação digitais. A batalha contra o sarampo, a poliomielite ou a gripe não se trava apenas nos laboratórios, mas nos celulares, nas conversas de WhatsApp, nos corredores das escolas.

É nesse descompasso que o corpo coletivo da sociedade vacila entre a potência do conhecimento científico e a fragilidade das estruturas sociais que deveriam sustentá-lo. Como em um romance de Dostoiévski, cada estatística esconde um dilema moral, um conflito íntimo, um gesto de desespero ou de descaso. O retorno de doenças evitáveis não é apenas um fracasso técnico; é o retrato de uma sociedade que diante da chance de se imunizar contra velhos fantasmas, escolheu flertar novamente com eles.

Além do rastro dos surtos endêmicos, quando se examina o lastro que a COVID-19 deixou na psique coletiva, observam-se cicatrizes e tremores subterrâneos que sacodem a população por completo. Um estudo global com mais de 7,7 milhões de participantes intitulado “The global prevalence of depression, anxiety, and sleep disorders among patients coping with Post COVID-19 syndrome: a meta-analysis” (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC10848453/) identificou que entre as síndrome pós-COVID-19, cerca de 23% apresentam depressão (IC 95%: 20-26%), mesmo percentual para ansiedade, além de 45% relatarem distúrbios de sono (IC 95%: 37-53%) entre 27 estudos com 15.362 participantes, demonstrando que os efeitos persistentes da doença ultrapassam o corpo físico, infiltram-se no cotidiano, no sono, no humor, na capacidade de se levantar de manhã e encarar o mundo. (Seighali et al., 2024).

No Brasil, dados divulgados pela Agência Brasil (https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-03/afastamentos-por-transtornos-mentais-dobram-em-dez-anos-chegam-440-mil) e compilados em relatórios da OIT/MPT (https://brasil.un.org/pt-br/292926-brasil-afastamentos-por-problemas-de-saude-mental-aumentam-134), revelam a gravidade do cenário pós-pandemia em termos de adoecimento psíquico ligado ao trabalho, registros do INSS apontam 440 mil afastamentos por transtornos mentais, que em comparação com os registros de 2022 esse numero é um salto de 134% a mais.

Dentre as causas de afastamento, a ansiedade e depressão lideram os afastamentos com 141 mil e 114 mil casos respectivamente, sinalizando a explosão de diagnósticos e uma transformação estrutural do que significa estar apto ao trabalho no país, que por outro lado, esses dados mostram que a crise de saúde mental se consolidou como uma das maiores causas de incapacidade laboral no Brasil, desafiando empresas, governos e famílias.

Estudo intitulado “Impact of post-COVID-19 syndrome on quality of life and mental health in vulnerable populations in the Brazilian Amazon.” (https://bmcinfectdis.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12879-025-11327-1), focado na síndrome pós-COVID-19, conduzido com 25 indivíduos residentes em Santarém (PA), revela que mais da metade dos participantes apresentaram sintomas significativos de ansiedade e depressão, reforçando o peso da pandemia na saúde mental, evidenciando as limitações de acesso a serviços médicos e instabilidade socioeconômica.

Vale dizer que em territórios vulneráveis, a pandemia não se encerrou como demonstram as estatísticas, ela se infiltrou de forma insidiosa no cotidiano, transformou a vida em uma sucessão de fadigas acumuladas, insônias persistentes e ansiedades que não se curam com o tempo. Os corpos exaustos se tornam arquivo vivo de sintomas da febre, da respiração encurtada, da concentração que nunca retorna por completo.

Esses sinais clínicos, muitas vezes invisíveis nos relatórios oficiais, se sobrepõem à precariedade estrutural do saneamento deficitário, da carência de postos de saúde, do transporte irregular, criam um terreno fértil para a perpetuação da doença ajudada em grande parte pela condição social ao qual a população se encontra.

Essa permanência da pandemia fala de um paradoxo cruel em que o vírus continua circulando, seus efeitos agora cada vez mais prolongados e amplificados pelo abandono histórico de regiões marginalizadas. A insônia que atravessa as noites é também a insônia de um Estado que não consegue oferecer políticas consistentes; a ansiedade que oprime o peito é também a ansiedade coletiva de populações obrigadas a conviver com a incerteza econômica, com a escassez de recursos e com a falta de horizontes.

Nesse cenário, a COVID-19 se metamorfoseia em metáfora da desigualdade, de uma enfermidade que adoeceu milhões e se transforma em uma “lente” que torna visível a vulnerabilidade de quem, mesmo após o “fim oficial” da emergência, continua a carregar a pandemia como uma presença cotidiana, íntima e persistente.

Semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos, dados do National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) até 2023 mostra que a prevalência da depressão em adultos após o pico da pandemia estabilizou em 12,4% (95% CI: 10,6-14,1%), acima das taxas anteriores a 2020. Mulheres, jovens adultos e pessoas com menor nível socioeconômico foram os mais atingidos em comparação com o período pré-pandemia, muitos carregam o eco da ansiedade, da incerteza, da perda que permanece latente. (Jiang et al., 2025) (https://www.nature.com/articles/s41598-025-87593-5).

O colapso é silencioso, a ciência mostra que a saúde mental se deteriorou em escala global; as instituições, por outro lado, parecem reagir com lentidão, esforço disperso, cobertura desigual. O “bem-estar” prometido em discursos de pós-pandemia tropica nos becos da inobservância, morre aos poucos em promessas vazias e orçamentos “apertados”; são agendas de consultas lotadas nos CAPS, pedidos tardios de ajuda psicológica, médicos cansados, pacientes que isolam sofrimentos.

Há um custo econômico e social desse abandono, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), há mais de 1 bilhão de pessoas vivendo com problemas de saúde mental no mundo (https://www.who.int/news/item/02-09-2025-over-a-billion-people-living-with-mental-health-conditions-services-require-urgent-scale-up), estima-se a perda de produtividade avaliada em US$ 1 trilhão/ano com afastamentos de trabalhadores com depressão e ansiedade no pós-pandemia. Essas condições não amparadas e não tratadas se refletem em ausências por licenças médicas e em “presenteísmo”, quando o trabalhador está presente fisicamente no local de trabalho, porém incapacitado de exercer a profissão (https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-health-at-work).

Quando sistemas negligenciam os transtornos mentais, os custos para tratamento tardio ou para intervenções mais complexas disparam, invisibilidade de sintomas precoces, barreiras de acesso ao atendimento, escassez de profissionais especializados e dispersão institucional significam que muitos casos de depressão, ansiedade ou trauma persistem sem tratamento, evoluindo para formas mais graves, remissão parcial ou recaídas.

Isso amplia o sofrimento individual e a sobrecarga em redes hospitalares, em emergências psiquiátricas, além de impactos no sistema de seguridade social, com aumento de auxílios por incapacidade e custos médicos elevados. O custo social do abandono não se resume à economia, ele dilacera a trama social, famílias se endividam para pagar tratamentos, diagnósticos privativos ou suporte psicológico, escolas e comunidades convivem com alunos e jovens em sofrimento invisível, gestantes têm risco aumentado de depressão pós-parto sem suporte.

Em muitos casos, a discriminação ou o estigma impede que se busque ajuda, atrasando ainda mais intervenções; não é só a dor individual que se multiplica, mas os danos colaterais da perda de capital humano, ruptura de laços comunitários, diminuição de confiança coletiva nas instituições, e, sobretudo, o anúncio silencioso de que uma sociedade deixa seus fragilizados à deriva.

Olhando para trás, os surtos de sarampo, dengue, coqueluche, cólera, mpox e poliomielite, suas estatísticas extrapolam os limites da medicina, denotam pragmaticamente advertências de que o descuido coletivo e a falta de políticas públicas consistentes transformam doenças preveníveis em ameaças renovadas.

A mesma lógica se aplica à saúde mental, cuja negligência cobra preços silenciosos, invisíveis à primeira vista, porque são devastadores no longo prazo. A ideia de que a pandemia terminou contrasta com esses fenômenos que se arrastam como feridas abertas, demonstrando que o futuro de promessa distante, fez-se cobrança imediata.

“Futuro” que já se inscreve nos sistemas de saúde sobrecarregados, nas filas intermináveis no CAPS e nos relatórios que denunciam aumentos de afastamentos, mortes evitáveis e custos bilionários. Cada estatística é um lembrete de que a lição não aprendida se transforma em dívida social, que governos e sociedade não reconhecem a urgência de investir em prevenção, integração da saúde mental e manutenção das coberturas vacinais, o custo recai sobre famílias, comunidades e trabalhadores que arcam com a consequência da omissão coletiva.

A ciência dá instrumentos sem precedentes, vacinas, terapias digitais para saúde mental, sistemas de monitoramento genômico, ferramentas de inteligência para prever surtos. Contudo, o acesso desigual, o subfinanciamento e a lentidão política continuam a criar um abismo entre o que é possível e o que é realizado. A fatura do “futuro” está na mesa, já com inscrição do CPF no Serasa, cobrando pelo descompasso entre a velocidade das descobertas e a morosidade das políticas públicas em transformar conhecimento em ação.

Também nos cobra em termos éticos, quando normalizamos índices alarmantes de sofrimento psíquico, ao aceitar que doenças antes controladas retornem, ao permitir que populações vulneráveis sejam as primeiras a sentir os impactos e as últimas a receber cuidados, esse abandono é técnico e administrativo, sobretudo moral.

A omissão diante do sofrimento é uma escolha política, um modo de dizer quem merece cuidado e quem pode ser esquecido, pois o que está em jogo não é apenas a memória da pandemia ou a prevenção de futuros surtos, e sim a redefinição da própria noção de cuidado coletivo.

O futuro está ai com juros altos, quando adoecemos de uma doença evitável, quando o trabalhador se afasta por ansiedade, quando cada cuidador se sacrifica em silêncio. São cobranças que exigem ações além da ciência e recursos, pede coragem política e empatia social para que não continuemos a repetir, geração após geração, as mesmas negligências travestidas de normalidade.

Se esse texto expõe falhas, é porque nelas se escondem histórias de pessoas reais, do trabalhador que teme perder o emprego ao admitir ansiedade; da mãe que hesita vacinar o filho por falta de informação clara; do jovem que carrega nas costas a solidão de uma insônia interminável. O abandono não é um conceito abstrato, é um ato cotidiano que se concretiza quando o poder público posterga, quando a comunicação falha, quando a sociedade escolhe ignorar.

E é nesse hiato entre a promessa e o gesto que vidas se deterioram em silêncio, porém não basta a denúncia fria, há que se reconhecer o sofrimento humano, as tentativas de resistência, os pequenos atos de solidariedade que florescem mesmo em meio à aridez. Não é só indignação que move a escrita; é também ternura por quem resiste, por quem insiste em buscar ajuda, por quem não desiste de acreditar que é possível cuidar melhor.

O gesto de resistência pode estar em coisas aparentemente pequenas, o vizinho que compartilha o número de um CAPS com alguém em crise, o professor que interrompe a aula para escutar um aluno que se fecha em silêncio, o agente comunitário de saúde que insiste em visitar uma família negligenciada pelo sistema.

Movimentos miúdos, invisíveis ao radar oficial, são as rachaduras por onde entra a luz, mostram que o cuidado não desapareceu, dispersou, encontrou caminhos subterrâneos para sobreviver. E é desse subterrâneo que emergem redes de apoio informais, grupos de mães que se organizam em mutirões para acompanhar filhos em tratamento, coletivos juvenis que falam abertamente sobre saúde mental, associações de bairro que reivindicam vacinação porta a porta.

Nesses espaços, a solidariedade compensa, ainda que parcialmente a ausência do Estado, não substitui a política pública, mas lembra que o social continua pulsando mesmo quando as engrenagens institucionais emperram. A ternura que se exige não é condescendência, mas reconhecimento da dignidade de quem em meio ao abandono inventa maneiras de não sucumbir.

Todo testemunho recolhido, os números estatísticos que se traduzem em rosto, as denúncias atravessadas pela escuta do humano servem para resgatar uma verdade simples: não se trata de contabilizar perdas, sim de valorizar quem no meio delas insiste em permanecer inteiro.

Portanto, escrever contra a indiferença é ao mesmo tempo escrever a favor do que ainda resiste; é mostrar que apesar de tudo existe um tecido social que insiste em não se romper, que precisa ser fortalecido sob pena de nos tornarmos cúmplices do abandono que fingimos apenas narrar.

Se existe um tecido social que insiste em não se romper, é porque a maior ousadia seja enxergar nele a potência de reorganizar, de reivindicar, de forçar a escuta em espaços onde há tanto silêncio cúmplice. O abandono, quando revelado não pode mais ser naturalizado; ou se fortalece a rede que resiste, ou se aceita com a passividade de cúmplice que ela se esfarele.

E é aqui que reside a sacada, não é a esperança ingênua que nos salva, sim o incômodo que permanece, o incômodo de ler um dado e enxergar nele um rosto, de ouvir uma história e sentir que ela nos perpassa, de entender que a indiferença também é escolha. Porque ao se recusar a ser mero registro, instiga-se o incomodo fértil que costura o elo de uma trama reconhecendo a dor e evitando que ela seja vivida na solidão, senão, daqui para frente, será tudo para trás.


❒ Josué Vieira, santareno, é professor, escritor, poeta e pesquisador sobre Sociedade, Cultura e Amazônia. Mora em Manaus (AM). Leia também dele: Katy, um reino além da consciência. E ainda: Desesperos, morte e silêncio na Colônia Vertical dos Perdidos.

— O JC também está no Telegram. E temos ainda canal do WhatsAPP. Siga-nos e leia notícias, veja vídeos e muito mais.


Publicado por:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *