Agapito: o embaixador do Arapixuna

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Capa do livro do AGAPITO

por Cristovam Sena (*)

Cristovam Sena - Blog do JesoEm 1981, criamos a Biblioteca Boanerges Sena. Em 1988, comecei a estruturar o Projeto Memória Santarena. Adquiri uma filmadora Panasonic M9000 – grande e pesada – e passamos a colher depoimentos de personalidades que compõem a própria história política, social, esportiva, econômica, religiosa e folclórica de Santarém.

Trabalho que continuo realizando, sem a frequência do início, agora numa Sony handycam – pequena e leve – que cabe na palma da mão. Hoje, mais de 50 entrevistados compõem a galeria dos nossos personagens.

A partir de 2011 esses depoimentos começaram a ser transcritos e editados em formato de livros, sendo o primeiro o de José da Costa Pereira, famoso Zeca BBC, lançado por ocasião dos festejos dos 350 anos de Santarém.

O último, o do seu Agapito, editado ano passado. Sexto livro editado: Zeca BBC, Dom Tiago, Isoca, Emir Bemerguy, Dica Frazão e Agapito.

Agapito de Andrade Figueira foi o quarto personagem entrevistado. Entrevista realizada no dia 2 de abril de 1989, um domingo, no sítio do seu filho Paulo Figueira, na comunidade do Irurama, região do Eixo Forte.

Estava com 72 anos. Perguntado se valeu à pena viver, respondeu ao Manuel Dutra, que o entrevistava:

“Quero ainda viver mais vinte anos para ver até que ponto vai chegar o nosso Brasil”.

Seu Agapito foi um homem simples. Primeiro o conheci através das inúmeras estórias criadas com o seu nome. Estórias que envolviam sua pessoa em situações hilariantes. Depois o conheci pessoalmente através dos filhos, passamos a ter um relacionamento mais próximo e frequente.

Em novembro de 1990, em sua companhia, participei de uma pescaria no lago do Atumã, Alenquer. Os filhos Paulo, Djalma e Osvaldo de Andrade estavam presentes.

A viagem de barco para o lago foi memorável. A bordo um sanfoneiro, acompanhado de zabumba e pandeiro, animava a vigem tocando sua música preferida, que ele pedia com insistência: “Entre tapas e beijos”.

Em 1992, o convidei e ele aceitou vir conhecer a biblioteca do ICBS. Era sábado. Após a visita ficamos comendo peixe e tomando cerveja.

Aos 75 anos aparentava boa saúde, comia bem e de tudo, acompanhava nossa turma na cervejada. Estava alegre, aceitou contar seus próprias “causos” – o que não gostava de fazer.

Contou a última e disse que achou interessante. A piada da festa na sede do Luso América, em Arapixuna, que as meninas que não tinham sido convidadas foram “se inxirir” querendo dançar.

No dia 24 de dezembro de 1993 participou na residência do genro e amigo Tarcísio Lopes, da festa do Natal. No dia seguinte continuava ao seu lado, agora no hospital, Tarcisio estava com um rim paralisado.

No dia primeiro de janeiro de 1994, uma sexta-feira, às quatro horas da tarde, sepultava o genro amigo. Tarcisio era diabético e abusou nas comemorações natalinas.

Durante o velório, conversando com seu Agapito ele contou-me como tinha sido a festa na casa do Tarcisio: pitiú assada e ventrecha de pirarucu dava no meio da canela, tudo isso regado a 51, uísque, vinho e cerveja.

A morte do genro abalou o sogro. Cinco dias após o enterro seu Agapito era internado no Hospital São Camilo, suspeita de obstrução intestinal, conhecido nó na tripa. No outro dia, seis de janeiro, fui visitá-lo no hospital. Na saída conversei com a Dra. Eva Gentil. Fui informado que seu caso era irreversível.

Na manhã do dia seguinte (07/01/1994) fui avisado pelo Paulo Figueira da morte do seu Agapito. Faleceu aos 76 anos de idade.

Homem honrado, amigo, respeitado por todos. Seu enterro foi bonito, os amigos de Arapixuna compareceram em peso lotando a Catedral. Foi sepultado no cemitério Nossa Senhora dos Mártires.

Agapito de Andrade Figueira foi um líder carismático, com influência na história política e religiosa da sua Arapixuna querida. Não acumulou bens materiais, doava mais do que recebia. Ajudava mais do que era ajudado.

Ao fazer de Santarém sua segunda morada virou lenda e as estórias com o seu nome ainda hoje continuam sendo contadas, empurradas pela força da sua popularidade. As primeiras depois de morto começaram a circular logo após a noticia do seu falecimento se espalhar pela cidade. Os autores anônimos brincavam com sua chegada ao céu.

Interessante destacar que esses autores não tinham autonomia sobre o personagem criado por eles. Estavam presos à sua forte personalidade, que impunha às estórias um padrão que correspondesse à sua maneira de ser. Por isso, nenhuma das brincadeiras criadas com o seu nome feriam a sua dignidade, desvirtuavam sua personalidade. Estavam, sim, ligadas ao homem simplório que era.

Mesmo não sendo capaz de compreender o porquê daquilo que ele chamava de “movimento” com o seu nome, conseguiu impor no folclórico personagem criado, seu perfil de homem honrado.

Devido a essas estórias seu Agapito de Andrade Figueira passou a ser conhecido na região e no resto do Brasil. Quem visitava Santarém e a elas era apresentado, se encarregava de levá-las para longe. E elas iam se espalhando como as sementes da samaumeira, atravessando rios, percorrendo quilômetros, levadas pelo vento e pelas águas. Piadas inocentes, nascidas da anônima criatividade popular.

Quando lhe perguntavam como foi que tudo aconteceu, seu Agapito respondia que deve ter sido por causa do seu nome, e acrescentava: “O povo que inventa. Não sei porque simpatizaram comigo. Nenhuma dessas piadas tem fundamento”.

O filósofo romano Tito Lucrécio (99 – 55 AC) já dizia que nada pode nascer do nada assim, a primeira estória do seu Agapito não deve ter surgido do nada. Quem contou a primeira? Nem ele sabe, creio que ninguém sabe. Mas o Anésio Oliveira, que namorou uma das suas filhas, é lembrado como o iniciador das estórias que fizeram do seu Agapito o personagem que extrapolou o âmbito regional.

O certo é que elas surgiram, a platéia gostou, aprovou. Proliferaram novos causos ao sabor da criatividade de produtores anônimos, que antes do seu Agapito tiveram no pedreiro Timóteo farto material para suas estórias.

Agapito nasceu na comunidade ribeirinha do Arapixuna, próximo a Santarém, localizada no “Furo do Jari”, acidente geográfico que liga o Rio Tapajós ao Amazonas.

Sempre se dedicou ao trabalho comunitário no Arapixuna e durante 14 anos foi presidente do clube Luso América. Na política foi partidário da antiga Arena e adversário ferrenho de Magalhães Barata.

Em 1989, aos 72 anos, dizia que queria ainda viver mais vinte anos para ver até que ponto chegaria o nosso Brasil.

Infelizmente não conseguiu chegar ao século XXI para ver a transformação do Brasil, de Santarém, da sua Arapixuna.

No dia 07 de janeiro de 1994 morreu o homem Agapito. Uma semana após ter falecido seu genro Tarcísio Lopes.

Morreu o homem, permaneceu a tradição do personagem. Tradição que precisa ser revigorada, retransmitida para as futuras gerações.

Nossa intenção com “Agapito: o embaixador do Arapixuna” é não deixar os dois desaparecerem: as pegadas no caminho percorrido pelo homem e a tradição do personagem.

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* Engenheiro florestal, é diretor-fundador do ICBS, Instituto Cultural Boanerges Sena.


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Santareno, ex-jogador de futebol, é engenheiro florestal e nº 1 do ICBS (Instituto Cultural Boanerges Sena).

12 Comentários em Agapito: o embaixador do Arapixuna

  • Eu como filho de Arapixuna conheci seu Agapito e me emociono c as histórias dessa grande pessoa … quero resgatar muita coisa boa que na época da minha infância vivi.
    Como por exemplo os pássaros e bois que coisa Maravilhosa…minha mãe dona “cereca” como era conhecida me fez hoje viver da arte
    Hoje sou músico e compositor devo tudo a ela…

    ..

  • Um livro que terá que ser integrado à minha pequena estante, e que já antevejo o prazer da sua leitura. Mas Jeso, nada de site para solicitá-lo. Antes de julho, estarei com o Cristóvão para satisfazer o desejo de conhecer o ICBS (essa iniciativa meritória) e voltar para Belém com ele na bagagem ou lendo no próprio avião.

  • Caríssimo Cristovam Sena
    Pertencí à segunta turma de concluintes do então GDA (1947). Fui contemporâneo, no dom Amando, de santarenos ilustres como Reinaldo Fernandes e Emir Bemerguy e muitos outros. Testemunhei, assim, a primeira eleição municipal após a queda da ditadura de Vargas, que elegeu prefeito de Santarém o baratista Adherbal Corrêa (PSD), tendo como opositor o jovem advogado Nestor Orlando Mileo (CDP). A oposição elegeu, então, apenas tres vereadores: Antonio Veloso Salgado (Ninito), Flávio Flamarion Serique e Agapito de Andrade Figueira. Ninito Veloso renunciou o mandato para dar ensejo à ascensão da combativa professora Antonieta Dolores Teixeira (Tutica), que era a primeira suplente. Estive presente na calorosa comemoração dos vitoriosos ocorrida no Bar do Chic, esquina da Siqueira Campos com a travessa dos Mártires. Conhecí e ouví, então, os vibrantes discursos dos eleitos Flamarion Serique (Boim) e Agapito Figueira (Arapixuna).
    Evandro Diniz Soares

  • Jeso, olha que interessante.
    Hoje quando falamos de Santarém fora da cidade, alguém logo pergunta sobre Alter do Chão.

    Mas, quando sai de Santarém em 1985 para morar em Belém, ao falar que era de Santarém com muito orgulho, alguns diziam “então conta uma história do Agapito” ou “vem cá ele existe mesmo?”

    Seu Agapito, o conheci, foi vizinho da minha avó Ercila Maia, na Rua 24 de Outubro, era nosso cartão postal. Olha que sério tudo isso, vejam a força folclórica que tinha e ainda tem seu Agapito.

    Isso tudo é muito forte, lindo e o máximo. Acho até que o folclore bacana que envolve seu Agapito não pode se perder e tem que ir para a literatura santarena.

    Beijos na família dele, umas duas vezes reencontrei a Ana, deu uma saudade danada daquela rua, no quadrado do Veterano.

    Adorei essa narrativa do Cristovam. Obrigada.

  • Vamos também lembrar de Miguel Pinto, que além de amigo foi também um homem que correspondeu com.suas vertentes religiosas e sociais. Fundado umas quinze ou mais comunidades na região fo Apaixona , Picae e etc.

  • Parabéns Cristóvão Sena pela linda lembrança do nosso ex-vizinho Agapito. eu também vou adquirir esse livro.

  • Excelente trabalho vem fazendo o ilustre amigo Cristovam Sena, escrevendo a memória de gente que faz história e que deixa um legado de vida exemplar.
    A Biblioteca Boanerges Sena, que tornou-se ponto de referencia para pesquisa de estudantes e professores de todos os níveis do conhecimento, é sem dúvida, um espaço que contempla o maior e mais importante acervo literário de Santarém e do Oeste do Pará, fruto da abnegação e dedicação de seu idealizador e diretor Cristovam Sena, que sempre teve e continua tendo o apoio incondicional de sua esposa a Senhora Ruth Sena.
    Cristovam; meu respeito e admiração pelo brilhante trabalho que ao longo de décadas vem desenvolvendo em favor da memória cultural dos santarenos e de Santarém.
    É de gente assim que o Brasil precisa. Parabéns!

      1. E a sua assinatura tem peso de quem é identificado com a cultura literária. Continue produzindo matérias que tem essa valor e identidade para e com a cultura santarém. Forte Abraço nobre e respeitado amigo Jeso.

      2. Estudei com a Hermita e o Osvaldo de Andrade no CEAAS. Através de seus filhos conheci “seu” Agapito e levei-o para almoçar com os oficiais do 3° BPM em 93 e naquela ocasião ficamos conhecendo um homem inteligente, alegre, feliz e preocupado com o seu tempo. Não era aquele dos inúmeros causos que alegravam as reuniões de um grupo em busca de gargalhadas para descarregar as tensões do dia-à-dia. A amizade com Tarcísio Lopes era de pai para filho. Lembro disso por ouvir do próprio Tarcísio o carinho pelo sogro. Tarcísio era obreiro da ARLS Harm.’. SANTARENA n° 17. Anos depois de falecer ainda surgem causos atribuídos ao s. Agapito.

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