
Seja com romantismo ou fé, há quem afirme que o amor resiste a todas as provações; resistiria à guerra, porque haveria refúgio nos olhos do outro; resistiria à distância, porque inventa pontes com palavras ligando os amantes a um objetivo comum; resistiria ao tempo, porque se alimenta de memória dos toques, dos gestos, das falas e dos afetos compartilhados. Mas o que acontece quando o mundo se torna inabitável climaticamente para os próprios gestos do amor?
Quando a temperatura ultrapassa os 40 graus, o beijo perde o frescor, o abraço se retrai e até o desejo tropeça na exaustão. O amor, que depende do encontro, passa a precisar de espaço, de sombra, de ar, e, a pergunta já não é se o sentimento sobrevive, mas se os corpos suportam sustentar a promessa de proximidade num planeta que já não oferece refúgio.
❒ Leia também de Josué G. Vieira: Morar em movimento: quando o lugar bruma e a Terra já não guarda nossos nomes.
O calor não é apenas um dado ambiental, ele reorganiza o cotidiano afetivo e quando o extremo modifica os horários do encontro, impõe limites ao tempo compartilhado, exige estratégias para estar junto. O toque, o colo, o repouso ao lado, que antes era espontâneo passam a ser mediado por ventiladores, ar-condicionados, pausas e distâncias.
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A convivência exige negociação constante entre o conforto térmico e o desejo de proximidade, pois o calor cria uma intimidade opaca, uma espécie de erosão silenciosa dos gestos amorosos. Daí, como amar com paciência se o corpo arde? Como ouvir o outro se o calor nos deixa sem fala? Há aí um campo de análise sensível que a teoria social ainda não percorreu o suficiente: como o ambiente condiciona o afeto e limita o exercício do amor?
Talvez seja preciso pensar o amor não mais como algo que habita apenas a esfera emocional ou simbólica, mas como um fenômeno corporalmente climático. A convivência humana é um microclima estabelecido em um ambiente em que os toques e a aproximação dos corpos são práticas térmicas, portanto se o planeta muda, mudam também as possibilidades de amar.
O aquecimento global não afeta apenas as florestas ou as geleiras, afeta, também, as relações, e nisso reside um dos aspectos mais invisíveis da crise climática: sua capacidade de interromper as formas mais sutis da vida compartilhada.
No mundo físico, o calor altera a matéria e os corpos humanos não escapam a essa regra, eles se dilatam, suam, cansam com mais facilidade, buscam alívio em superfícies frias e se retraem ao menor sinal de proximidade térmica indesejada. Logo, o que acontece quando esse calor constante se torna o pano de fundo da vida cotidiana?
A pele, extensão tátil do afeto torna-se uma barreira; a cama como espaço do acolhimento vira um campo de batalha contra o suor; o desejo que nasce do toque, da presença próxima, se vê mediado por estratégias de sobrevivência térmica. Amar em tempos de colapso climático carrega um custo energético para o afeto que não se calculava antes, onde o amor precisa disputar espaço com o ventilador, com o ar-condicionado, com a busca por sombra, que às vezes perde.
Esse afastamento corporal provocado pelo calor vai além do incômodo, inaugura um novo espaço da intimidade, ao qual reorganiza a arquitetura da casa, dos hábitos e dos encontros, pois os corpos pressionados pelas altas temperaturas, evitam a sobreposição, em que dormir abraçado passa a ser uma exceção, beber água substitui o beijo, os encontros amorosos precisam acontecer no tempo certo, na hora mais fresca do dia e mesmo assim, com o risco de que o desejo se dissolva na exaustão.
O amor começa a operar sob o regime do adiamento, como se não houvesse mais um clima propício para a entrega, e isso não se restringe ao âmbito privado: casais se afastam, famílias se desorganizam, comunidades se desestruturam, o clima, enquanto força invisível, modela profundamente o campo relacional.

A intimidade é uma coreografia sensível entre temperatura e presença, exige tempo, sombra e repouso, assim, num mundo que arde dia e noite, onde até o vento parece ferver, o cuidado se torna uma prática difícil de manter; é erosão do desejo e, também, fragilidade das formas ordinárias de esperança, segundo Lauren Berlant.
Daí, pensar que o aquecimento global destrói não apenas, o ambiente externo, também, as zonas térmicas do afeto, os pequenos climas que sustentam a vida comum são postos à prova. O planeta em crise nos empurra, lenta e silenciosamente, para uma forma mais fria de viver, mesmo quando tudo à volta queima.
Na tradição literária, o amor sempre foi um ato espacial, uma geografia simbólica da espera, da entrega, do descompasso; pelas belas letras, ele está na esquina onde se reencontra, no porto onde se espera, no banco à sombra onde se lê uma carta com as mãos trêmulas. Ao longo dos séculos, a literatura nos ensinou a amar em lugares, no entanto, quando os rios secam, os parques queimam, os bancos de praça ferem a pele, e as sombras deixam de existir, onde amar?
O espaço da intimidade desaparece, o amor perde o chão, daí: é possível amar no caos? Clarice Lispector, como quem escreve com a alma em brasas, responderia que sim, que o amor é matéria de resistência. Mas, também, advertiria que ele exige um mínimo de mundo para acontecer, porque o amor, é esse bicho tímido que precisa de sombra e silêncio para se deixar crescer.
Talvez seja isso que sinta Valter Hugo Mãe, ao escrever: “O amor é o nome das coisas que ainda resistem.”, sugerindo que o afeto é uma forma de salvação silenciosa, mesmo quando o mundo está desmoronando ao redor. O amor, em sua obra aparece árduo, pedregoso, comovente; uma dureza sensível ressoando no presente, que como hoje, em tempos de urgência climática, exige atravessar ruínas, suportar temperaturas impossíveis, inventar o afeto onde o ambiente já não favorece, daí o amor é uma forma de persistência humilde diante da brutalidade do real.
Chico Buarque, em sua ficção e música, escreveu tantas vezes que o amor resiste à aridez, o amor não é um ideal romântico alheio ao mundo, mas uma força frágil que resiste em meio à brutalidade do real urbano, político, linguístico e/ou corporal, em Budapeste (2003), o protagonista José Costa descobre no húngaro um abrigo linguístico para sua intimidade desfeita.
Pela linguagem ele reconstrói sua identidade e recria o amor, como se o afeto precisasse de um idioma próprio para sobreviver ao colapso da vida cotidiana: “Tive a estranha impressão de que, por um breve instante, todas as palavras do mundo cabiam naquela língua,” escreve imprimindo sensação de abrigo na palavra diante do excesso de ruído e velocidade, a linguagem amorosa precisa ser recriada em outros climas, José Costa busca o amor como um gesto de fuga do calor de uma vida consumida por traduções automáticas e vazios sentimentais.
Já em Leite Derramado (2009), o amor é um resto de memória corroída pelo tempo e pelo corpo falho, o narrador, um velho em seu leito de hospital, revisita a história de sua paixão como se tentasse agarrar o que ainda resta de vida no corpo que já não responde; diz: “Ela cheirava a roupa limpa, era magra, era fria.”
A frieza, como sintoma de um tempo em que o toque e o cuidado foram substituídos por heranças, posses e ausências; o amor é evocado como ruína, como aquilo que não coube no ritmo do mundo, como algo delicado demais para resistir às estruturas de poder e de masculinidade de seu tempo.
Em Construção (1971), canção-narrativa com estrutura repetitiva crescente, vemos a ironia trágica do homem moderno que tenta sustentar o afeto, “e beijou sua mulher como se fosse a última”, mas é esmagado pelo peso da rotina, do concreto, do urbano, o afeto é interrompido pela máquina do progresso e amar em meio ao ruído da cidade, à opressão dos dias e ao colapso dos sentidos é um ato de resistência condenado à falência ou à poesia.
Há esforço de existir apesar do concreto, do ruído, da pressa, tal qual hoje, num mundo acelerado e em chamas que não oferece mais os intervalos onde o amor pode se articular, visto que o poema perdeu seu ar; a brisa virou exceção.
No universo literário de Elena Ferrante na tetralogia A Amiga Genial, o amor não floresce em paisagens neutras ou idílicas, ele emerge como uma tensão permanente entre desejo e destruição, entre entrega e retração, entre o impulso de se aproximar e a necessidade de sobreviver num mundo que asfixia, Lenu e Lila, amam em ambientes que as esmagam emocionalmente, socialmente e fisicamente.
A Nápoles descrita por Ferrante é um organismo hostil, opressor, marcado por calor excessivo, moradias apertadas, ruídos constantes, pobreza e violência, o ambiente age diretamente sobre o afeto, moldando os limites do que é possível sentir e expressar. Em História do Novo Sobrenome, Lenu escreve: “Naquele verão o calor parecia subir da terra como um castigo. Lila e eu não nos suportávamos.”, sugerindo que o clima é uma metáfora corporal da tensão entre as duas amigas, de que há uma temperatura para os sentimentos, quase insuportável.
Em História de Quem Foge e de Quem Fica a relação entre o espaço físico e o amor volta a aparecer de forma explícita quando Lenu descreve o apartamento em que vive com seu futuro marido: “A casa era pequena, abafada. Tudo ali parecia apertado: o ar, os móveis, as palavras. Até o desejo diminuía.”
O afeto não é autônomo; ele é condicionado pelo espaço e pelas condições materiais, o ambiente opressivo não apenas impede o prazer, mas inibe a possibilidade mesma de construir um vínculo duradouro. Logo, em História da Menina Perdida, Lila, já adulta, diz em uma de suas cartas a Lenu: “Eu me recuso a amar num lugar onde mal consigo respirar.” A recusa ao amor não é recusa ao outro, mas à impossibilidade de amar quando o mundo ao redor se torna inóspito, como se o ar, o espaço, o tempo fossem pré-condições materiais para o afeto.
Em outro momento, Lenu relata uma visita ao bairro de infância: “Voltei ao bairro e o calor me engoliu como uma punição. Pensei em Nino e senti vergonha. Nada ali permitia que o amor durasse.”, o ambiente urbano dificulta a continuidade dos sentimentos, como envergonha quem ousa desejar ali; o amor, nesse caso, é um luxo impossível, um gesto quase fora de lugar, selando a ligação entre espaço físico e afeto, em que o amar é possível, mas apenas à custa de resistência diante de ambientes que negam o próprio gesto de amar.
Annie Ernaux, com sua escrita implacável, constrói uma poética do íntimo que está sempre atravessada pelo mundo, pela história, pela política, pela temperatura dos tempos, suas obras Os Anos (Les Années, 2008) e O Acontecimento (L’Événement, 2000), o amor é tratado como um fenômeno histórico encarnado, vivido por corpos que envelhecem, que se revoltam, que desejam e que sofrem sob as condições materiais e simbólicas do seu tempo.

Em Os Anos, por exemplo, ela escreve: “Tínhamos aprendido o amor sob o signo da guerra e da reconstrução. Depois, vieram os corpos livres, mas sempre expostos.” Aqui, Ernaux nos lembra que o amor é uma aprendizagem histórica, modulada pelos climas sociais, a liberdade do corpo feminino, o prazer, o afeto, só se realizam dentro de regimes temporais que os sustentam ou os reprimem.
Já em O Acontecimento, relato seco e doloroso de um aborto clandestino na França dos anos 1960, a autora mostra que o amor, o desejo e o sofrimento não são apenas íntimos, mas termômetros de uma época, escreve: “Estava grávida, e era como se carregasse em mim uma colisão entre minha vida e o mundo.” Nesse confronto, o amor é esmagado pela possibilidade do mundo não permitir que ele se realize, que se converta em vida.
Ernaux experimenta a solidão como efeito de uma temperatura social que nega o cuidado, que silencia o corpo; uma solidão que hoje encontra eco nas novas formas de afastamento afetivo impostas pelo colapso climático: o calor que nos obriga a dormir longe, o cansaço que desfaz a atenção, a paisagem árida que inibe o gesto.
A força da autora está justamente em revelar que não há amor fora do mundo, que o afeto é atravessado pela economia, pela política, pelo espaço urbano, pelas transformações históricas e, sim, pela temperatura ambiente. Em outro trecho d´Os Anos, ela descreve como as relações afetivas mudaram com a ascensão da televisão, com os ritmos do consumo, com o avanço do neoliberalismo: “Tudo era mais frio, mais rápido, mais funcional. Inclusive o amor.”
Esse “mais frio” é físico e simbólico, e hoje, quando vivemos o aquecimento do planeta, o amor encontra um novo tipo de desafio: persistir onde falta sombra, onde o toque é suado demais, a cidade queima e o tempo não abriga. Ensinar o amor a respirar sob o calor é um gesto poético; um projeto ético, histórico e urgente; o mundo muda, e os corpos amam de maneira diferente.
Qual a elegância e força de Ernaux, Sara Ahmed, diz que as emoções não são entidades internas, isoladas, e sim, maneiras pelas quais nos orientamos no espaço, no tempo e nas relações, sentir é sempre se mover em direção a um objetivo ou para longe, com ou contra. O afeto é um gesto espacial, quando o mundo muda, o calor se instala como presença contínua e o clima desorganiza a previsibilidade do cotidiano, os frenesis do enamoramento e/ou os maniqueísmos do cuidar também se modificam; amar não é igual; é, fragmento.
As obras de Chico, Ferrante e Ernaux, conectam-se quando entendem que o amor é sempre uma travessia frágil entre ruínas do corpo, da linguagem, da história, do tempo. O amor é esmagado pelo concreto do mundo moderno; é fragmento de uma memória corroída pela velhice e pela perda de mundo. Ele ferve de tensões, mostra mulheres tentando amar entre paredes apertadas e afetos comprimidos.

É arquivo íntimo aberto enquanto todos estão na brevidade do amanhecer e fechado quando as sombras se recolhem, revelando que amar é aceitar que o corpo e o desejo modelados por forças históricas. O amor como um gesto que precisa sobreviver ao tempo que o nega.
Esses três autores de vozes distintas, convergem naquilo que anunciam sem dizer, de que o amor é possível, mas ele precisa de clima, precisa de mundo, precisa de espaço para respirar. E se o mundo está em colapso, o amor entra em estado de emergência, amar exige condição, e que, quando o chão aquece, o ar pesa, e a paisagem adoece, o afeto sofre.
A bússola emocional se desnorteia, os corpos já não sabem ao certo como se mover, quem antes abraçava agora hesita; quem buscava proximidade agora se esquiva. O afeto, que era gesto de aproximação, passa a ser também cálculo térmico, logística do alívio, assim, o calor não apenas esquenta, ele reconfigura os sentidos de vínculo.
Essa desorganização sensível produz uma nova cartografia dos desejos, um mapa incerto, onde o erotismo cede lugar à autopreservação, e o prazer à busca por frescor. O desejo, já naturalmente frágil frente às pressões sociais, ao cansaço e à ansiedade, passa a reagir ao clima; um ambiente quente demais, um corpo suado, um abafado, fazem o desejo se contrair, se recolher dentro de uma pedra, no silêncio de si próprio.
A chuva, que antes umedecia a cena do beijo nas histórias de amor, agora não vem, o beijo seca junto. O sol, outrora figura poética dos encontros, como em Truffaut, como em Vinicius, transforma-se em obstáculo, os passos tornam-se lentos, o encontro é adiado. O amor se vê obrigado a mudar de forma ou perecer, romantismo passa a carregar o peso da sobrevivência, e o toque, antes afetuoso, se torna um risco ao conforto.
O que se ergue sobre este tempo é uma paisagem emocional abafada, onde o amor ainda insiste em existir, mas encontra cada vez menos ar, o planeta não esfriou o afeto; ele o sobreaqueceu; é uma exaustão que não nasce da falta de sentimento, mas da dificuldade de sustentá-lo. Os corpos, pressionados por uma atmosfera densa, aprendem a se proteger até do que os nutria. O colapso ambiental não dissolve apenas rios e florestas, também os rituais do encontro, o tempo da escuta, o toque que exige repouso, e, hoje corremos o risco de viver o oposto: um mundo tão quente, tão exausto, que o amor não encontre lugar.
Amar exige energia, disposição, tempo, escuta e tudo isso escasseia em um mundo onde é preciso sobreviver ao dia antes de pertencer a alguém, o amor passa a acontecer entre pausas, entre respiros curtos, entre o cansaço e o sono mal dormido. Tornam-se “afetos comprimidos”, um toque rápido, um gesto funcional, uma mensagem breve. O calor, que deveria ser metáfora do desejo, virou seu obstáculo literal.
Nesse novo clima, meteorológico e emocional, a duração dos sentimentos e sua profundidade são encurtados à força, torna-se um amor adaptado à instabilidade, menos lírico, mais administrável, mais econômico. Não por frieza, mas por pura limitação de recursos subjetivos, há menos paciência para as demoras da conquista, menos silêncio para o cuidado, menos presença para o conflito transformador.
O amor não some, mas se transforma em sobrevivência afetiva, vive-se um estado de prontidão, como quem ama entre alarmes e urgências, e isso se expressa nos corpos, o toque que se evita, o olho que não sustenta o olhar, o gesto de cuidado que é adiado. O clima é uma pedagogia do afastamento; a atmosfera espessa, torna os corpos inflamados, irritáveis, defensivos, como se o mundo inteiro tivesse se tornado inapropriado para o amor.
E… No entanto, quando o amor acontece, vem o milagre, surge como um vento fresco na madrugada, inesperado e breve, mas real, como uma sombra gentil sobre um banco quente, como um gole de água limpa. Nesse contexto, amar é um ato revolucionário de insistência na delicadeza; um corpo que cuida de outro em meio ao colapso: um gesto humano contra o fim.
Por ser raro, o amor hoje valha mais, porque ele acontece apesar do ar escasso e da paisagem em chamas, qual uma flor nascendo entre pedras, o amor se torna um sinal de que a Terra ainda não desistiu completamente de nós e que, enquanto houver quem ame, talvez ainda haja algo a salvar. Dai, nossa tarefa mais urgente não seja apenas reduzir carbono, mas reensinar o corpo a amar em meio à febre da Terra, resgatar os gestos mínimos da convivência e fazer do cuidado um abrigo… antes que até ele se evapore.


❒ Josué Vieira, santareno, é professor, escritor, poeta e pesquisador sobre Sociedade, Cultura e Amazônia. Mora em Manaus (AM). Leia também dele: Katy, um reino além da consciência. E ainda: Desesperos, morte e silêncio na Colônia Vertical dos Perdidos, Criadores e destruidores; visionários e nostálgicos e Ser Bastião: um testemunho em carne, câmera e alma.
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