Foi assim… Cem anos de Ruy Barata. Por Joaquim Onésimo Barbosa

Publicado em por em Arte, Opinião

Foi assim... Cem anos de Ruy Barata. Por Joaquim Onésimo Barbosa
Ruy Barbosa, poeta paraense nascido em Santarém

Havia o céu – eis tudo

(e um azul incompatível

com a minha dignidade

de poeta

sufocado

pelos acontecimentos)

LesevenementsA linha imaginária

“[…] diz sem chorar, Que meu todo querer é teu, sempre teu…”, escreveu ele em poema dedicado a Santarém, a cidade em que nasceu. Entretanto, não permaneceu nela para crescer e banhar-se nas águas do Tapajós, este que se faz rio e rua, elas que levam outros Ruys a outros rios.

Deixou a terra de nascimento aos dez anos de idade para estudar como interno no Colégio Moderno, em Belém, e depois correr e banhar noutros rios, que banham o país que, dizia ele, se chamava Pará.

Joaquim Barbosa *

Escreveu e cantou o amor, as águas, a Amazônia, os amigos, a natureza, a vida humana, a morte, as inquietações do seu tempo, num tempo que tem tempo de tempo ser. Foi assim a plural e agitada vida do poeta, advogado, professor, jornalista, compositor, e ex-deputado estadual, militante político, declaradamente defensor da bandeira de ideologia comunista, observador das coisas a sua volta, um paraense inteiro, um verdadeiro dândi, conforme o descreve o jornalista Lúcio Flávio Pinto, com quem Ruy teceu longos momentos de prosa aos domingos.[i]

Esse, e muito mais, é o perfil de Ruy Guilherme Paranatinga Barata, o Ruy Barata, cujo nome Paranatinga, segundo Clóvis Meira, significa rio branco, nome de gente, gente de valor; o primeiro nome é até mesmo um trocadilho: Ruy/rua, caminho de liberdade, de apego às raízes amazônicas.

Filho de Alarico de Barros Barata e Maria José Barata, nasceu, como dizia ele, no canto do rio Tapajós com o Amazonas, em 25 de junho de 1920 e faleceu em 23 de abril de 1990, em São Paulo, quando pesquisava sobre a passagem de Mario de Andrade pela Amazônia.

Santarém, sua terra de nascimento, parece ignorá-lo. Nada sobre ele. Nem em praça, nem na rua. Algum sinal? Ruy é um desconhecido – a não ser para uma parca clientela especializada – na cidade onde tantos têm nomes em qualquer lugar que se crie a lavonté, na cidade que parece rejeitar alguns filhos e insiste apagar a sua própria memória.

 

A Academia ainda deve a culpa de pouco – tão pouco – ter levado ao público e às bancas de dissertações e teses deferências sobre esse intelectual que participou de importantes momentos da vida política, cultural e literária do Brasil, da Amazônia e do Pará principalmente, não menos importante de Santarém, porque é seu filho.

Ainda há escassa pesquisa sobre a engenharia poética de Ruy Barata, com exceção de, aqui e ali, alguns parcos artigos, monografias e dissertações de mestrado. Pouco para um intelectual que não se limitou à vida de homem público como professor, advogado e político. Foi além disso.

Ruy fez-se vários. Navegou por vários domínios, discorreu numa expressão de liberdade bem amazônica: ambivalente, maliciosa, anedótica, sensual e festeira, observa Lúcio Flávio Pinto. Vasculhou as entranhas da vida cotidiana, observou-as em minúcias e poetizou em letras sonoras e filosóficas; fez lirismo com humor, ironia e política, o amor em abstrato com o mais primitivo erotismo, rima e verso livre, história e cotidiano, mitologia e anedota.

Criou sem artificialismo porque a sua arte era a expressão da sua vida, às vezes caótica, às vezes irregular, em conflito, lembra Lúcio Flávio. Viajou entre anjos, quando escreveu O anjo dos abismos (1943), escrito entre 1939 e 1942, em que presta homenagem ao seu pai, Alarico Barata, e ao amigo Francisco Paulo Mendes, e nas letras em que desenha a imaginação variada da vida, em espécie de ritual religioso em tom até mesmo fúnebre, em cujas ideias a leveza e a pureza dos anjos anunciam a morte e conduzem ao deslocamento da viagem ao paraíso, no encontro “das almas moribundas” com o eterno.

O abismo, na poética de Barata, é a metáfora da derrota do poeta, vencido pela força do abismo; o anjo dos abismos é tecido na metáfora do mar. A luta do poeta com os anjos leva-o para o abismo, onde atesta a sua fragilidade, mas é onde está a força da inspiração poética.

Em A linha imaginária (1951), da qual, mais tarde, mescla ditos e escritos em Antilogia (2000) onde exaltou a liberdade – a liberdade que faria evidente mais tarde em “Me traeuna Cuba libre, porque Cuba Libre está” – liberdade das ruas, nos ritos do cotidiano, tenta afastar-se do poeta de tom pessimista e sóbrio que se faz notar em O anjo dos Abismos.

O poema, com que abrimos este texto, é o segundo da obra com o qual parece afastar-se do espelho que reflete a feitura simbolista reclamada em sua primeira obra: “Só agora buscas o espelho/ que procuravas evitar, / só agora tentas restabelecer / todos os elos / que ainda justificam / tua mísera existência, / – mesmo aos não evidente –”. 

O Nativo de câncer, obra inacabada, publicada por Alfredo Oliveira em Paranatinga, parece romper com as amarras torcidas em Anjo dos Abismos e A linha imaginária, trinta e três anos após o lançamento da segunda obra.

Ruy vale-se, recorrentemente, em Nativo de câncer, dos neologismos, ecos e aliterações, fazendo nascer verbos e suas visagens, para falar, sem as amarras dos ritos gramaticais, do mundo amazônico, o qual conhecia muito bem, em versos onde a variedade da fauna e da flora, e não sem importância, a mulher, são postos ao escrutínio da poética de Paranatinga, através da qual o poeta se interroga “E tu que tens a dar, se não tens nada / a não ser essa terra deflorada / no falus-ferro dos Paranatingas?”.

Ruy Barata viveu entre a poesia e a vida pública, mais claramente na política, na qual serviu como deputado estadual por dois mandatos, também como professor na Universidade Federal do Pará, de cuja cadeira foi aposentado compulsoriamente pelo regime ditatorial de 64, retornando em 1979 com a anistia.

A poesia era, certamente, o seu maior passatempo, em que se dedicou até às vésperas de sua morte, e ele fazia da poesia instrumento de engajamento político e protesto: “todas as minhas letras são políticas […] Flagram uma realidade local e, necessariamente, não servem a qualquer regime”,[ii] alerta ele em entrevista a Alfredo Oliveira.

Humanista, defendeu a volta do Estado de Direito e mais atenção às causas sociais, aos menos favorecidos, quando de sua colação de grau em Direito em 1943. A busca por justiça social era uma das características dos jovens escritores das praças de Belém do movimento literários que ficou conhecido como Grupo dos Novos do qual Barata participou, e colaborou na revista literária e política Terra Imatura, que ajudou a fundar juntamente com Cléo Bernardo e Silvio Braga e da qual também participou outro ilustre escritor paraense, o autor dos dez romances do ciclo do extremo Norte, Dalcídio Jurandir.

 

Ruy Barata poetizou a vida, principalmente em registros da infância. Seus poemas, letras que se transformaram em sucesso na voz de Fafá de Belém, por exemplo, revelam o letrista de mão cheia que foi, que não largou suas origens amazônicas, das bandas de Santarém e Óbidos, roteiros de viagem quando na adolescência e, depois, nos tratos como político, fez de Óbidos seu reduto eleitoral.

Sua estreia como poeta se dá aos 18 anos, quando publica Eterno Dilema, na revista Terra Imatura, e em 1943. Mostra-se para o mundo literário com um conjunto de textos poéticos em Anjo dos Abismos, obra na qual a morte se faz presente: “é a morte que vai chegar das regiões eternas/É a morte que vai chegar da imensidão dos mares”; essa morte metaforizada em elementos que remetem à leveza, à efemeridade das coisas, ao mistério, tais como a noite, o mar, os sinos.

O mar, no qual o eu lírico permite e intenta a viagem para o além, é a ponte em que se concretiza o convite de partida: “Ó mar, o mar chamando meus passos para caminhos distantes/Mar gritando por mim da noite escura/ no sossego da sala iluminada pelo candeeiro”, poetiza ele, num percurso em que o mar conduz a outro lado do desconhecido, assim como conduziu os aventureiros navegantes em outros tempos; assim como a mesma morte leva o homem para o mistério, para o mundo de outras existências, para o mundo dos entes.

Antonio Candido, ao mencionar os poetas que considera como os dois melhores representantes da poesia da primeira metade do século passado, João Cabral de Melo Neto e Ruy Guilherme Barata, estranha a repetição das imagens adensadas na presença constante do “mar” – ao todo 29 vezes. Porém, observa Candido, os exageros na repetição da palavra não tornam o texto de Barata desfeito de sentido, pois seus poemas se leem com prazer e nunca se tem a sensação deprimente de pastiche,[iii] além do que revelam uma identificação profunda com a poesia de Augusto Frederico Schmidt.[iv]

Enquanto no Brasil de Mário e Oswaldde Andrade o modernismo fazia-se conhecer, principalmente nas bandas do Sudeste e Sul, no remanso dos rios e no entre matas da Amazônia, na década de 40, bubuia uma poesia que corre no remansodas águas e emerge das mãos de Ruy Barata, e se assim se pode dizer, conduz, no rebujo das correntezas, uma literatura amazônica, afeita ao processo criativo do homem amazônico, uma literatura própria, de um outro país, do país que Barata viveu e imaginou nas trilhas do Porto Caribe “um país que se chama Pará”, com o perfil do Ruy, dos Ruys, do homem da Amazônia.

A propósito da linguagem que carrega em sua engenharia poética, a linguagem do poeta Ruy Barata encontra eixo naquilo que outro poeta, o autor de poética do imaginário, João de Jesus Paes Loureiro, chama de encantaria como expressão simbólica do sentimento, através da qual o poeta constrói relações simbólicas entre o que conhece, o que se guarda na arca da memória e o que alimenta com sua experiência,[v]experiência que se massifica na fase neomodernista do poeta paraense de Santarém.

Da encantaria, a que Loureiro alude e a qual chama de dimensão de uma realidade mágica, em que repousa o sentido daquilo que poderia ser, naquilo que é, emergem para a superfície dos rios e do devaneio, os botos, as cobras grandes, os puraquês, as entidades do fundo das águas e do tempo, que assumem formas significantes de expressão, dimensão estética, a substância do fazer poético, como pensa Paes Loureiro, amigo de Ruy em prisão.

Ruy dos rios, Ruy das ruas – muitos Ruys

Se a prosa e a poesia revelam o feitio naquilo que os críticos chamam de literatura regionalista, há que se pensar que a música – que transgride fronteiras e se faz eclética – possui seus recursos criativos e discursivos próprios.

Ruy Barata esgarça esse perfil, na sua engenharia poético-musical, em que a Amazônia tem sua representação em tela, ou destaca aquilo que Alfredo Oliveira chama de musicalidade de paraensismo, o que pode até mesmo confundir o poeta que escreve poesia com o compositor que cria suas composições musicais – se é que se pode fazer a dissociação dos dois.

Ruy considerava a sua música uma “trágica ópera tapuia” em que põe em destaque o homem amazônico, os indígenas, especialmente o vocábulo indígena, a natureza – no conjunto fauna e flora. Mas há um personagem que reina nas composições musicais de Ruy: o rio. Esse rio, como bem lembra um outro paraense, Leandro Tocantins, comanda a vida e demarca as geografias dos espaços por onde ele passa – o rio/rua, Ruy/rio.

Esse rio é minha rua e Pauapixuna revelam a poesia do “paraensismo” identificada por Oliveira na engenharia poética de Barata,mesclada pela encantaria do mito e pela linguagem cotidiana, ditas por Paes Loureiro, e também reflete uma outra poesia, que Carlos Felipe Moisés encontra na criação de poetas contemporâneos, a poesia vocal,[vi] poesia que também inscreve o que o medievalista Paul Zumthor identifica como “índices de oralidade”, a voz que se materializa na palavra escrita e realiza-se pela performance do “discurso que fala da própria voz que o carrega”.[vii]Não dá para ler a letra sem não pensar na música, no ritmo.

Esse rio é minha rua

Esse rio é minha rua

Minha e tua, mururé

Piso no peito da lua

Deito no chão da maré

[…]

Pois é, pois é

Eu não sou de igarapé

Quem montou na cobra grande

Não se escancha em puraqué

Me arresponde boto preto

Quem te deu esse piché

Foi limo de maresia

Ou inhaca de mulher?

Pauapixuna, em língua indígena significa aldeia dos negros, está localizada no município de Óbidos, Oeste paraense. É descrita, em carta ao governador do estado do Pará em 16 de junho de 1859, por Antonio Gomes Falcão, como o local onde “está o cacual de Sua Majestade”. A gente do lugar, segundo informa o remetente, é “bastante vadia e desambiciosa de ganho e de comércio. Quando não está com suas violas ou mergulhados nas suas bebices, em que são absolutos, cuidam do gadinho e do pouco cacau que vai desaparecendo com as enchentes”.

Na letra de Ruy e Paulo André, a descrição de Gomes Falcão parece encontrar eco – por coincidência ou não. Os descritos “a cantiga”, “a bebida” e “o gado no curral” são elementos que não só identificam a comunidade, onde Ruy Barata andou na adolescência e nas campanhas eleitorais enquanto deputado estadual, como indicam elementos típicos da linguagem e da cultura amazônicos.

Pauapixuna

Uma cantiga de amor se mexeu

Uma tapuia no porto a cantar

Um pedacinho de lua nascendo

Uma cachaça de papo pru ar

Um não sei quê de saudade doente

Uma saudade sem tempo ou lugar

Uma saudade querendo, querendo

Querendo ir e querendo ficar

Uma leira, uma esteira,

Uma beira de rio

Um cavalo no pasto,

Uma égua no cio

Um princípio de noite

Um caminho vazio

Uma leira, uma esteira,

Uma beira de rio

E, no silêncio, uma folha caída

Uma batida de remo a passar

Um candeeiro de manga comprida

Um cheiro bom de peixada no ar

Uma pimenta no prato espremida

Outra lambada depois do jantar

Uma viola de corda curtida

Nessa sofrida sofrência de amar

[…]

Se as cenas cotidianas não escapam da poética de Ruy Barata, o sentimentalismo é também marcado em sua poética, como se vê em Foi assim. De um lirismo acentuado, a canção descreve a despedida, a separação, porém diferente do que se expressa em Anjo dos abismos, em que essa separação se faz pela metáfora da morte, pelo distanciamento que cambia o mistério, apesar de o mar também ser um elemento de contato.

Foi assim

Foi assim!

Como um resto de sol no mar

Como a brisa da preamar

Nós chegamos ao fim

Foi assim!

Quando a flor ao luar se deu

Quando o mundo era quase meu

Tu te foste de mim

Volta meu bem

Murmurei!

Volta meu bem

Repeti!

Não há canção

Nos teus olhos

Nem amanhã

Nesse adeus

[…]

A conscientização social e ambiental não escapou da engenharia poética de Ruy Barata. Filho de uma região, para cujo espaço, hoje, todos os olhares se voltam, refletiu em seus escritos sobre o homem ribeirinho pescador e trabalhador, os rios, a natureza, o meio ambiente e a preservação da biodiversidade, em paisagem e debate corriqueiros – mas necessários – nos círculos de conversa e nos centros de estudos acadêmicos.

Em carta que escreveu em 1989 ao cantor e ativista ambiental Sting, Ruy reclama da cobiça de governos, como o dos Estados Unidos e Inglaterra, e da intromissão na formulação de uma efetiva política ecológica.

Segundo denuncia, “Sedentos por lucros, os capitães da morte destroem a Terra e a camada de ozônio que a protegem. Hoje, voltam-se para a Amazônia, não para redimi-la, mas para vender os seus pulmões, loteando-os entre os grandes proprietários da rendosa turística internacional”.

Paranatinga é um desses registros em que Barata reforça a importância da preservação e da memória. Emtupi-guarani: para = rio, na= grande, tinga = claro, ou seja, “grande rio de águas claras”,também é nome do poeta paraense.

Cantar Paranatinga é cantar a própria pessoa de Ruy; Ruy cantando o Ruy que carrega as lembranças das terras andadas, dos rios navegados, das muitas línguas faladas, remansos da língua geral da Amazônia, o Nheengatu, voz do Tupi-Guarani.

Paranatinga

Antes que matem os rios,

e as matas por onde andei,

antes que cubram de lixo,

o lixo da nossa lei,

deixa que cante contigo,

debruçado em peito amigo,

as coisas que tanto amei,

as coisas que tanto amei.

Antes que matem a lembrança

dos muitos chãos que pisei,

antes que o fogo devore

o meu cajado de rei,

deixa que eu cante afinal,

na minha língua geral,

as coisas que tanto amei,

as coisas que tanto amei.

Ruy explorou os neologismos como recursos expressivos em suas composições musicais e poesias, fez isso como forma de romper com a tradição.A propósito disso, Ruy dizia que sua poesia era uma forma de protesto,e portanto a ruptura com o discurso dominante, e ousou fazer isso de modo inconteste, estranho até, clamando pelos neologismos, pelos gerúndios, a modo bem paraense.

Nativo

Desses rastros dormindo nasce um campo

Na reponta dos ventos e mugidos

Caviana de cornos bubuiando

Barcarenas a ser, ou for, em sido

Há sempre o que sortir nesses doendo

De lonjura silendo e sipurgando

Amor é meses-mares siregendo

Amor é sipartindo e sichegando

Amor é amar, em dois, predicativo

Amor é sisofrendo e sisofrido

Amor é simorrendo e simatando

Amor é dez em dois de simorrido.

Se o mundo amazônico toma tamanho apontamento na poética de Ruy Barata, outros elementos, que conjugam a vida do poeta também, fazem-se presentes.

Os familiares, a filha Diva, e os amigos estão entre esses elementos que remetem à lembrança da vida do poeta. Em Breves considerações sobre o amanhecer, que compõe A linha imaginária, a referência à mãe, ao avô, aos amigos, a reclamação da distância que a vida adulta impõe a contragosto:

As cartas de minha mãe ditam remédios,

a voz de meu avô é grave e funda,

onde andais amigos meus – vinde depressa,

companheiros correi – já se faz tarde,

o adulto entre nós cavou distância

só o retrato nos apega à eternidade.

Em Carta, escrita em homenagem a Francisco Paulo Mendes, a declaração do amigo, a cumplicidade do poeta que reclama a ausência e a falta da companhia do amigo com quem possa desabafar e ouvir algo que dê direção às suas indecisões diante de tantos caminhos:

Chico,

não é o poema que me traz aqui

neste momento.

Não é o poema Chico,

é este cansaço,

este medo de ter tantos caminhos,

tantos,

e tão poucos satisfazem.

Na sua carta-poema, o poeta indaga a ausência da companhia do amigo de outros tempos e outras horas com quem podia conversar e contar sobre a vida: “Não é o poema Chico, / é o desejo de contigo sair por essas ruas, / saber em qual esquina envelhecemos”.

 

Essa cumplicidade entre amigos, de que Ruy reclama, redunda das amizades de adolescência, de grupos literário das praças de Belém, de mobilizações políticas vividas pelos jovens poetas, desde o pós-Primeira Guerra, participantes da Geração “Peixe Frito”, liderados por Bruno de Menezes, quando se reuniam no Ver-o-Peso para degustar charuto frito e jogar conversa fora ou debater literatura e política, sem compromisso, compromisso que amadureceria nos grupos literários que se firmaram depois, entre eles a Academia dos Novos, da qual Ruy passou a fazer parte, rompendo com os ideais parnasianos, àquela altura influenciado pelos gestos do modernismo aclamado por Mario de Andrade.

O Ruy que espera nos rios e nas ruas

A geração paraense de 45, da qual Ruy Barata fez parte, a princípio, era de um perfil mais de leitores e tradutores do que escritores: liam e traduziam o que os escritores já renomados escreviam, e faziam questão de publicar no Suplemento Literário Folha do Norte, mas sem esquecer de contrapor ideias, e em certo tom eles as ridicularizavam, ao mesmo tempo em que se faziam ponte entre “novo” e “velho” de uma forma um tanto caricatural, entretanto responsável, de modo a deixar claro o desejo pela renovação, quando também pelo interesse das causas sociais – mas com o objetivo principal, o de entender as gerações anteriores, as de 20 e 30, e, depois, marcar outras gerações.

Passados 100 anos do nascimento de Ruy Barata e oito décadas de sua entrada na vida literária, as ruas e os rios,vistos, trilhados e cantados pelo poeta santareno, ainda parecem estranhos a muitos. O Ruy Barata, que cantou/contou a política, a vida e a Amazônia paraense, parece um ilustre desconhecido em própria casa, principalmente em sua terra de nascimento, Santarém.

Se ainda cabe indagar quem foi Ruy, urge fazer conhecê-lo. Cabe também tornar acessíveis, aos desta e de outras gerações,os escritos da sua vasta engenharia literária, antes que o tempo, esse tempo que tem tempo de ser e de dar, se encarregue de encobri-los nas poeiras das prateleiras a que a modernidade líquida sempre obriga, quase sempre, ao desuso, à irrelevância, ao esquecimento.


* Joaquim Onésimo F. Barbosa é professor. Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia.


[i]https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2018/08/08/arquivo-jp-37/Acesso em 29/03/2020

[ii] OLIVEIRA, Alfredo. Ruy Guilherme Paranatinga Barata. Belém: Edições Cejup, 1990.

[iii] CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.

[iv] Poeta da segunda geração do Modernismo brasileiro. Em seus poemas permeavama morte, a ausência, a perda e o amor.

[v] LOUREIRO, João de Jesus Paes. A arte como encantaria da linguagem. São Paulo: Escrituras Editora, 2008.

[vi] MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.

[vii] ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

LEIA também: O machismo da academia não é elogio. É preciso combatê-lo. Por Regiane Pimentel


Publicado por:

2 Comentários em Foi assim… Cem anos de Ruy Barata. Por Joaquim Onésimo Barbosa

  • Muito importante para nós paraenses conhecer a vida e os trabalhos de Rui Barata. Acho importante tirar os olhos da TV e conhecer um pouco mais de um ilustre homem amazonida.

    1. Concordo. Esse texto do professor Joaquim Barbosa é um prato cheio de informações sobre o poeta paraense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *