
Os três primeiros textos desta série falam um pouco da história do Sairé. As pessoas também informam-se sobre essa festa testemunhando-a em Alter do Chão, entre cerimônias e atrações. Contudo, há quem ainda não a entende. Afinal de contas, o que é o Sairé?
Neste ano, o evento acontecerá de 18 a 22 de setembro, no distrito de Alter do Chão, em Santarém (PA). Será a 52ª celebração da festa profano-religiosa de relevância nacional.
Entendê-la vai depender do contexto e da época a que se refere. O Sairé dos tempos atuais tem outra dinâmica se comparado ao de séculos atrás. Nos dias de hoje, pode ser classificado, sem nenhum problema, como uma manifestação da cultura popular da Amazônia. Porém, como poderia ser classificado nos séculos XVIII e XIX?
Leia também sobre o Sairé:
— ARTIGOS RELACIONADOS
- A proibição do Sairé e o seu renascimento em Alter do Chão em 1973 e ainda: Sairé começou na Aldeia, e já teve em Aveiro, Alenquer e Parintins, no Amazonas.
Atualmente é comum defini-lo como um evento religioso misturado com o profano. Há quem diga que se tratar de uma cerimônia indígena que foi apropriada pelos colonizadores. Há também quem afirme que o Sairé seja apenas a parte religiosa, e que o festival dos botos “não é o Sairé”.
Como defini-lo então?
Missionários religiosos europeus
Assim que a Coroa Portuguesa passou a colonizar o Brasil em 1530, muitas foram as estratégias dos europeus para que eles pudessem expandir o novo território e, assim, terem benefícios próprios. Uma delas foi o envio de missionários com o objetivo de converter os nativos e, assim, ajudar no processo de ocupação da área e geração de riquezas.
Os primeiros missionários enviados ao Brasil colônia faziam parte da Companhia de Jesus, que aqui chegaram em 1549. Os franciscanos da província de Santo Antônio teriam sido os primeiros a chegar à Amazônia, no início do século XVII.
Johannes Philippus Bettendorf, da ordem dos Jesuítas, é considerado o missionário fundador da aldeia dos Tapajós, em 1661, que tempos mais tarde seria chamada de Santarém.
O objetivo desses religiosos era, entre muitas outras ações, fazer com que os indígenas deixassem as suas crenças para aprenderem (ou serem obrigadas a aceitar) os dogmas da igreja católica. Essa prática fazia parte do processo de dominação europeia nos territórios dos povos nativos.

Sairé, um instrumento de conversão dos indígenas
Entre as muitas estratégias praticadas por esses religiosos estavam o aldeamento (quando transferia grupos indígenas para áreas controladas pelos colonizadores), a catequese (que era o ensino da doutrina cristã) e também… o Sairé.
Para o jornalista e produtor cultural Fábio Barbosa, o Sairé foi, entre os séculos XVIII e XIX, um instrumento de catequese da igreja católica. Prova disso é o próprio símbolo da festa, que é um arco contendo cruzes representando a Santíssima Trindade. Um objeto com figuras e simbologias diferentes dos costumes dos povos indígenas.
Outra observação do jornalista são as cantigas escritas em nheengatu, a língua indígena amazônica. Embora fossem grafadas nesse idioma, ao serem traduzidas seriam lidas saudações à fé católica. Como se sabe, os indígenas tinham outras crenças, geralmente politeístas, ou seja, com várias divindades ligadas à natureza, aos espíritos e seus ancestrais, e não a um só deus, como é o cristianismo.
O historiador e padre Sidney Canto definiu o Sairé como procissão que celebrava o nascimento de Jesus e, ao mesmo tempo, era uma “dança selvagem”. Diante dessas definições, entende-se que o Sairé não era uma festa dos nativos da Amazônia, mas que fora implantada para esses nativos, como forma de torná-los católicos.
Possível adaptação da cultura indígena
Já a pesquisadora Socorro Santiago afirma que o Sairé foi uma adaptação feita pelos padres jesuítas de um antigo ritual religioso indígena. De todo modo, foi uma prática de mudança dos costumes originais para aderirem à cultura europeia, esses europeus que estavam procurando dominar o novo território.
Costuma-se comentar que o Sairé foi, no passado, um evento puramente religioso e que, tempos depois, foi adicionado o profano. Entretanto, Socorro Santiago afirma que o Sairé sempre foi esse misto de religioso e profano, pois nos relatos antigos são lidas realizações de procissões, rezas e folguedos, que varavam a noite, acontecendo entre dois e três dias.
Pode-se dizer que o Sairé de Alter do Chão é uma importante herança de muitos outros sairés que existiram por séculos em diversos lugares, surgindo e desaparecendo, mas deixando as suas marcas, seja por escrito ou na memória de quem testemunhou e que foi vivendo de geração para geração.

Sairé, nada respeitoso
De todo modo, o Sairé não pode ser inteiramente romantizado. Comumente surgem textos que tratam bem as relações de portugueses com os povos nativos, como se tivesse sido uma convivência pacífica e respeitosa. Mas deslocar povos de seus lares para um lugar sob seus domínios ou mesmo obrigá-los a seguir outra fé, por interesse próprio, como teria sido o Sairé, não foi nada respeitoso.
Mas atualmente o Sairé é outro evento e tem outros objetivos. Celebram-se a união e as alegrias, complementadas por personagens locais, eternizando as memórias dos primeiros moradores desta terra e dos europeus que ajudaram para a construção do que se tem hoje em dia.
Fonte:
- Çairé: Uma festa na Amazônia (livro de Socorro Santiago, de 1999 | 1ª edição – ICBS);
- https://diariodofb.com/2018/09/20/o-que-e-caire/, acessado em 19 de agosto de 2025;
- https://rondoniaemsala.blogspot.com/2010/11/colonizacao-da-amazonia-missionários.html?m=1, acessado em 19 de agosto de 2025;
- https://sidcanto.blogspot.com/2017/09/uma-descricao-sobre-o-saire.html?m=1, acessado em 19 de agosto de 2025.
— O JC também está no Telegram. E temos ainda canal do WhatsAPP. Siga-nos e leia notícias, veja vídeos e muito mais.
Deixe um comentário