Foi por pouco. Por Jorge Guto

Publicado em por em Arte, Crônica

Angústias diferentes parecem chegar em certos momentos. Quem já não sentiu uma tristeza não mais que de repente, no final de um domingo? Júlio sentiu, e lembrou da mãe idosa quando estava viva, sempre narrava a dor em terminar mais um dia, sabendo especialmente que uma nova e enfadonha semana iria começar. 

Tinha a angústia da madrugada, essa vinha com um certo frio, entrava pela janela junto de um soprar, relento, acordando no sono de um apneico, devorando o descanso. 

Essa angústia tomava um corpo frágil na cama, vinha como arrastando uma agonia, trazendo uma consciência de tudo que estava fazendo na sua vida. Júlio geralmente se sentava, passava a mão no rosto, precisava se arrepender de tantas coisas que nem cabiam em uma madrugada, muito menos em uma só levada de estreiteza. 

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Um dos piores momentos era esse da madrugada, assaltado por uma memória acusadora – o diabo é acusador – pensava Júlio. Ao se deitar novamente sentia seus cabelos serem afagados pela tensão de uma presença, uma sombra de um ato reprovável de sua vida. 

Precisava se deitar com o seu diabo acusador, e lembrou de C.S. Lewis. Precisamos dormir muitas vezes com os nossos demônios, e quem sabe os apaziguando não se tratam de ser apenas anjos, impacientes. 

Júlio leu na página de notícias no Instagram, parte policial : “um meliante preso por ameaças, um quase furto de celular, uma tentativa”. Bagatela? O acusado disse que seu mal era o entorpecente, e também disse que o seu vício não tinha sido uma escolha.

Lá pelas 5 da manhã, ecoou a frase na sua cabeça: “… não tinha sido uma escolha…”. Queria escolher dormir, mas essa angústia só lhe oferecia uma opção. Ofegante, ansiedade de tirar o fôlego, agia agora como um foragido, sendo procurado dentro de sua própria casa. 

Na janela, quinto andar, lá estava a sua velha e morta mãe, em corpo caído no chão, e um espectro o chamando para avistar lá embaixo. Foi, e como se num desequilíbrio calculado, sentiu a mudança de pressão, o frio da queda na coluna espinhal, o cérebro logo percebeu a inclinação de seu corpo, e em choque lá estava de peito no chão, próximo da cama, com o coração acelerado, e o Sansão, seu shih tzu lambendo a sua cara.

Foi por pouco. 

➽➽ Jorge Augusto Morais, o Jorge Guto, é santareno, formado em direito e aprendiz da crônica reflexiva, em prosa, influenciado por uma tia, professora de literatura brasileira. Desde criança lê contos e escreve sobre dramas humanos universais, tendo como cenário uma Amazônia que pode estar na informalidade e no inusitado.


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