A Praça do Ó

Publicado em por em Artigos

por Célio Simões (*)

Célio Simões - Blog do JesoExistem logradouros ou bairros inteiros que nascem com a síndrome da rejeição de seu próprio nome oficial em todas as cidades, independente do porte de cada qual.

Para ficar apenas em algumas do Estado do Pará, em Marabá há o bairro do “Cabelo Seco”, na Santarém do meu tempo tinha a “Latada”, e o monumento dos “Três Patetas”; em Belém a Praça Princesa Isabel ainda é conhecida como a “Praça da Condor” e minha minúscula Óbidos não foge a essa regra imposta pela irreverência popular.

Quem não se lembra do Beco do Fuxico, do Covão da Ribite, da Cabeça do Padre, da Rua Bacuri, da Ladeira do Cai-Cai e da Praça do Ó, esta última, objeto desta crônica?

Qual a razão desses cognomes?

A ilação é fácil no que concerne aos cinco primeiros. Através do Beco do Fuxico, ao lado da Catedral, corria de boca em boca da Praça de Sant`Ana em direção à Rua 13 de Maio (hoje Marcos Rodrigues de Souza), os falatórios das balzaquianas encalhadas que não deixavam esfriar nenhuma novidade; o Covão da Ribite era uma alusão de mau gosto do local de moradia de dona Laurentina, espécie de bruxa fabricada pelo imaginário infantil, cujo aspecto molambento e horripilante era agravado pelos trapos que vestia, assustando-nos com sua cabeleira desgrenhada, no entremeio da qual ela guardava um chumaço de pimenta malagueta, diz que para espantar mau-olhado ou sabe Deus com que outra malévola intenção.

O simples cruzar com ela na rua era sinônimo de dia aziago, daí a conhecida expressão “pissica da Ribite” que alguém usava para azarar o adversário; a Cabeça do Padre, escombros da velha caixa d’água, assim ficou conhecida por ser cópia fiel da correspondente figura dos frades franciscanos que laboravam na Paróquia; da Rua Bacuri, a míngua de informações confiáveis, imagino a alcunha herdada pela abundância da árvore do mesmo nome, no início da vida republicana (1889), numa espécie de improviso que se tornou duradouro, até receber seu último nome oficial – Deputado Raimundo Chaves – justa homenagem ao excepcional médico, humanista, prefeito e deputado estadual prematuramente falecido; a Ladeira do Cai-Cai, não mais seria assim chamada, desde que foi pavimentada como agora está, evitando os muitos tombos aos que nela se aventuravam dos pontos mais altos da cidade no rumo do mercado.

E a Praça do Ó? Sugere alguma coisa?

Quando os cabanos de Miguel Apolinário Maparajuba baseados em Ecuipiranga (próximo de Santarém) resolveram invadir a cidade (depois de fazê-lo em Monte Alegre, Alenquer e Parintins) para promover seus costumeiros desatinos, foram repelidos pela prévia estratégia da defesa, envolvendo as forças vivas da sociedade, reunindo militares e civis. Crianças, idosos e mulheres que não podiam empenhar-se na liça, foram direcionados para atividades subsidiárias, quais sejam, a alimentação da tropa, o municiamento das armas, o aprestamento das barricadas para a defesa, tudo sob a orientação das extraordinárias figuras de dois irmãos, os Padres Antônio Manoel Sanches de Brito e Raimundo Sanches de Brito, que se faziam presentes em todas as frentes da defesa, incluindo o porto, as ladeiras, os morros e as encostas, tirando estrategicamente o melhor proveito da elevada topografia do centro urbano.

Dias antes da invasão, algumas senhoras impuseram uma pausa nos preparativos do iminente combate e assistiram ao ofício religioso conduzido pelos irmãos sacerdotes, ao fim do qual foi feita a promessa de soerguer uma capela em homenagem ao Bom Jesus, caso a cidade resistisse ao assédio dos cabanos.

O ataque, virulento, ocorreu em Junho de 1835, a cidade foi impiedosamente saqueada e a luta foi encarniçada. As baixas nas hordas invasoras foi de tamanha monta, que resolveram bater em retirada. Muitos obidenses, bravo povo que não foge de nenhum confronto, também morreram.

Entre os militares, urubu só comeu de capitão pra cima, como disse o famoso humorista. Vinte anos depois, superado o clima de terra arrasada, era chegada a hora de cumprir a promessa; após subscrição em dinheiro entre os católicos, foi iniciada a construção da capela, erguida em madeira e coberta de telha no ponto mais alto da colina.

Concluída em 1855 restaurou-a Dom Floriano em 1943, quando era vigário em Óbidos, posto que todo o madeirame e as telhas foram furtados em proveito de particulares. Não havia nenhuma residência ou prédio às proximidades. Não fosse a acentuada inclinação, aquilo seria mero balcedo escorregadio, coberto de vegetação rasteira.

O Quartel do 4.º Grupo de Artilharia de Costa foi erguido muito tempo depois, inaugurado em 1909, desativado e abandonado por completo em 1976, recuperado em 1998 pela SECULT (administração do Dr. Almir Gabriel) e finalmente transformado em Casa da Cultura do Município no dia 22.02.2002, com o pomposo nome de “Palácio da Cultura José Veríssimo”, justa homenagem a esse ilustríssimo filho da terra, fundador da Academia Brasileira de Letras.

Acrescento esses dados porque o quartel e seu entorno, onde está inserida a praça que inspira este texto, estão profundamente vinculados à própria memória do município. Tanto assim que lá mesmo foi construído o prédio que hoje serve de residência ao bispo da Diocese, para abrigar o Grupo Escolar José Veríssimo, no qual ingressei em 1955, como aluno do primeiro ano da professora Maria Dalva Sousa da Silva.

Remonta a essa época minha lembrança sobre a então denominada Praça do Bom Jesus, na verdade um descampado onde vicejava a juquira, receptiva ao pouso das borboletas brancas e amarelas que enxameavam no início do verão vindas do Laguinho, colorindo os olhos de quem nelas via o exuberante bailado da natureza.

No centro, um coreto rústico, onde as bandas alegravam os penitentes nas festividades de santos ali realizadas; alguns bancos de madeira “curtidos de servidão” propiciavam duvidoso conforto aos que se dignavam a ouvir o clarinete do velho Nascimento, saudados pelos fogos de artifício infalíveis nas festas do interior. E assim ficou a praça, despida de beleza estética, servindo de área de expansão aos estudantes do Grupo Escolar José Veríssimo, que nela tinham uma privilegiada arena para empinar papagaio, favorecidos pelo vento esperto do Rio Amazonas.

Isto até 1958, eis que a fundação da Prelazia de Óbidos, no ano anterior, implicou na mudança do educandário para o prédio onde até hoje se encontra, na Tv. Dr. Machado, antiga Rua da Prainha.

Administrações municipais posteriores resolveram adequar o dito espaço, nele construindo uma praça bonita, digna deste nome, após nivelar a superfície do solo, minorando a inclinação.

Surgiu apelidada de “Pracinha do Ovo”, pelo formato elíptico de seu canteiro central, após a remoção do coreto. O deboche não colou. Seus freqüentadores preferiram, à unanimidade, o carinhoso epíteto de “Pracinha do Ó”.

Se bem lembrado, os gregos possuíam duas versões para a letra “O”: o omicron, que representa o som de ”O” breve; e o ômega, usado para designar o som do “O” longo. E desde seu surgimento na Grécia antiga, a letra “O” manteve o formato aproximado de um círculo. Estava morta a charada.

O apelido pegou por esses dois fatores: sua diminuta dimensão, aliada ao formato de quem a concebeu.

Ultrapassada a gênese da “Pracinha do Ó”, custa nada discorrer sobre quão agradável era sentar ali nos finais de tarde, para contemplar uma das paisagens que mais me encanta em minha cidade natal – a visão do Rio Mar em união com o firmamento, tendo o verde musgo da Serra da Escama do lado esquerdo e a ponta da Ilha Grande, do lado direito.

No início dos anos 70, como ante-sala das festas do Salão Paroquial a simpática praça era um deleite. Precariamente iluminada, as musas transmudavam-se em Afrodite nas mãos inquietas e errantes dos seus parceiros, na vã tentativa de resguardar seus encantos, naquele envolver de corpos que pareciam latejar de febre.

Tudo ali preconizava a paixão no aumentativo e os pleitos bem ou mal intencionados no diminutivo, como a combinar com o minimalismo do local:

– Você se importa, meu bem, de uma conversa rapidinha lá na “Pracinha do Ó” antes da festa?
– Mas… mas… balbuciava ela, trêmula de dúvida e desejo…
– Mas… nada! Você sabe… Aqui na Praça de Sant`Ana tem muita gente!…
– Em que você está pensando?
– Apenas desejo ficar só com você (pois sim!)…

O amor é assim mesmo: ardiloso, enganado, fugitivo ou culpado. Sentimentos vão e voltam mais fortes, passeando no tempo. Que o digam os que amam! Quantas dessas demonstrações lá aconteceram testemunhadas tão somente pelo sibilar da brisa noturna suave e fresca…

Ali era um cenário de constantes e envolventes tramas, aventuras, paixões, risos, ciúmes e ódios, essa torrente de sentimentos que desabrocha na escala de sonhos da juventude, às vezes com efeitos duradouros…

E as serenatas, quem delas se lembra? Pode-se considerar um bem essa aparente frivolidade? Penso que sim, porque “os dias felizes não deixam à pessoa a mínima vontade nem de perder, nem de recomeçar a vida”, no dizer de Chateaubriand. Em compensação, coisas perversas foram acontecendo com aquela nobre área, ponto de atração da juventude, até transformá-la em algo amorfo, pelo que observei em minha última estada em Óbidos.

A praça está descaracterizada. Violaram o regramento constitucional que disciplina a afetação de bens públicos em detrimento da construção de um imóvel particular, embora esteja ele (é bom que se diga) passível de desapropriação extraordinária para fins de urbanização. Um amontoado de barracas completa o descalabro, em troca de pedágios pagos a terceiros, conquanto construídas em área comum de uso do povo. Urge uma providência, para que não se perpetue essa aberração para com o patrimônio municipal, que não tem dono, pois é de todos os munícipes.

Lembro que em Julho de 1991, a guisa de repouso, passei alguns dias em Óbidos. A Praça de Sant`Ana fervilhava na expectativa das famosas gincanas, então em sua XIV edição, no interregno de 22 a 24 do aludido mês, promoção de elevados dividendos culturais que não se verificou mais desde 2008.

Algumas missões das equipes participantes eram espinhosas e as famílias dos estudantes se mobilizaram prestando ajuda para o êxito de cada qual. Havia as modalidades esportivas, as de palco e a pior delas, as “tarefas surpresas”. A Coordenação do evento gentilmente me convidou para participar da comissão julgadora do dia 23 de julho.

A uma das equipes foi atribuído fazer um breve histórico sobre os seguintes assuntos: a) o Forte Pauxis; b) o Quartel; c) a biografia do Prefeito Haroldo Tavares. Notei a ausência de temas voltados ao histórico dos nossos principais logradouros, porém limitei-me ao julgamento, atribuindo os pontos conquistados pelo grupo de sessenta integrantes cada. Tivesse me lembrado a tempo, arriscaria a sugestão de incluir, sem prejuízo dos demais, algo sobre a origem e a trajetória da “Pracinha do Ó”, para perpetuar este recanto da “Cidade Presépio” aos que lá desfrutaram de belos momentos.

O tempo passou. A praça perdeu seu antigo encanto, embora remanesça alguma esperança. Recentes notícias dão conta que existe um projeto de recuperação em andamento, apesar das naturais resistências dos retrógrados e inconformados.

Após a restauração, transformou-se novamente no agradável point que sempre foi, restabelecida que foi pelo arquiteto e urbanista Carlos Antônio Silva, que lhe devolveu em toda a inteireza, a magia daquele espaço, sabidamente modesto, é verdade, se comparado a logradouros famosos de outros centros urbanos, porém emblemático para muitas gerações – como a minha, por exemplo – que lá deram vazão àquela fase dourada da juventude que nunca mais volta.

O pavimento agora é feito de blocos de cimento redondo, no entremeio dos quais nascem com vigor as flores brancas ou amarelas que a própria natureza semeia. Uma beleza! Em 2011, ao novamente visitá-la fiquei extasiado com a visão paradisíaca que dela se tem do entorno da cidade, haurindo o frescor que acaricia a face, mesmo no clima tropical quente e úmido da Amazônia. Simulado desconhecimento, indaguei a um cidadão sentado em um banco ao meu lado:

– Mudaram o nome desta praça?
– Não senhor; o nome é Praça Frei Rogério.
– Mas ainda chamam de “Praça do Ó”?
– Não. Agora o apelido é outro: “Praça da Pizza”, por causa do calçamento redondo…

– – – – – – – – – – – – – – – – –

* É advogado e cronista. Membro da Academia Paraense de Jornalismo. Escreve regularmente neste blog.


Publicado por:
Advogado e escritor, nasceu em Óbidos. É membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Reside em Belém e escreve regularmente neste blog.

Uma comentário para

  • Ao grande amigo e cronista uma sugestão: que tal trocar ” pleitos bem ou mal intencionados” por ” peitos bem ou mal intencionados” ? Bela crônica para alertar o povo sobre quem quer o bem da cidade. Em cada esquina uma dor por tudo de abandono que a cidade vem sofrendo ao longo de passadas e certamente de futuras administrações que virão. Os políticos não têm vergonha de se repetir. Vejam o que fizeram com a igrejinha do Bom Jesus, hoje totalmente descaracterizada, uma vergonha nacional com suas portas emparedadas e fechadas para o povo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *