Quando o camarada passa dos 70 ele vira meio que um arquivo, cheio de histórias, algumas alegres, outras nem tanto, mas todas significativas pois, como disse o poeta, “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
E às vezes até me espanto quando lembro que é o meu caso e desde algum tempo, no Gazeta de Santarém e neste blog, resolvi abrir algumas gavetas desse arquivo.
Já contei história do “Meu barbeiro ‘bam bam bam’ e a pepéua preguiçosa”; já afirmei que “Dadá também é cultura”; já contei história do “Toró, o maior ‘hair stylist’ que conheci”, com o mérito de ter começado quando ainda nem se ouvia falar nisso; já contei história de torcedores emblemáticos do nosso clássico futebolístico local, Fran x Rai; já contei história do meu amigo Rubem Miranda Chagas em “Plantador de açaizeiro” e nas “Bengaladas” contei histórias do nosso futebol que à época renderam boas gargalhadas.
Enfim, já abri algumas das muitas gavetas do meu arquivo de vida e ainda abrirei outras tantas, como faço a seguir.
Quando éramos adolescentes, lá pelos anos de 1965, meu querido irmão Eriberto e o Miltinho (Milton Régis de Souza Filho), fundaram um time de futebol, Dínamo, para disputarmos o Campeonato Juvenil, cujo técnico era o Vicente Silva, e a casa dele, ali na 24 com Padre João, se transformou na sede do time.
O que era uma brincadeira ficou sério e chegamos até a disputar a final no Estádio Elinaldo Barbosa contra o São Francisco, que era um timaço.
Do meio da “mulecada” do Dínamo saíram jogadores que depois brilharam nos times principais, como Birimba, Afonso Cupu, Ronildo, Silas, Arinos, Dicozinho, Arnaldo e outros mais.
Um dos goleiros era o Dionaldo, meio rechonchudo, não tão alto, mas dentro das balizas tinha uma agilidade que compensava a pouca estatura e os quilinhos a mais. Dava-nos total confiança. Era um companheirão, responsável, agradável no trato e aos domingos sempre estava lá para fechar o nosso gol.
Nas comemorações que fazíamos no quintal da casa do Vicente, arriscava umas “Jovem Guarda” no gogó e não era vaiado.
Aluno aplicado, estudava no Ginásio Batista dirigido pelo Professor Pastor Sóstenes Pereira de Barros e sua esposa, Professora Onésima, que fizeram história, tanto na vida social quanto na vida acadêmica em Santarém.
A disciplina – ao contrário do que observamos nas escolas de hoje -, era levada a sério, com a rigidez necessária, complementando, como deve ser, a educação familiar.
O corpo docente, como de resto em todas as escolas, era respeitado e qualquer indisciplina, onde quer que fosse, era inaceitável e quando acontecia, era imediatamente punida.
Os alunos, principalmente os do último ano, para arrecadarem dinheiro para a formatura, com a aprovação das escolas, promoviam festas abertas ao público em seus pátios.
E é justamente um fato acontecido num evento desses que quero contar.
Deu-se no Batista e além das barraquinhas de refresco, doces e salgadinhos, um palco foi montado onde hoje é o que resta do campo de futebol e lá se apresentariam alunos que fossem bons de “gogó”. O nosso amigo Dionaldo, figura carimbada nesses eventos, não poderia faltar.
Para não haver surpresas desagradáveis que fugissem do ambiente familiar, cristão, as músicas que seriam cantadas pelos diversos “conjuntos” que se apresentariam teriam que ser submetidas durante a semana antecedente à aprovação da escola.
A música que o nosso amigo cantaria foi vetada pois a letra continha algo que naquele palco cristão era um palavrão: “Só quero que você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá pro inferno”.
Dionaldo foi avisado e meio a contragosto disse que trocaria a música mas na surdina, avisou aos amigos que na hora cantaria a música do “vá pro inferno”.
O “ti ti ti” chegou à direção da escola que informou que se ele fizesse isso seria suspenso e todos ficamos apreensivos.
Poxa! Seria uma pena!
Para sanear o impasse nos colocamos durante a semana a tentar convencê-lo para mudar de ideia e de música.
O boato correu como rastilho de pólvora no recreio e pelas ruas, bares e campos de pelada daquela Santarém de 50 mil habitantes, três bairros e duas rádios.
Os ingressos subiram de preço e já se comentava que em breve estariam esgotados.
O campo de futebol já se afigurava pequeno para quem desejava ver ao vivo a fofoca do momento: um aluno desafiar uma ordem da direção da escola.
E eis que chega o dia fatídico!
Um pouco atrasado para garantir o suspense, vestido com um colorido blusão, mangas compridas boca de sino e calças apertadas no mesmo estilo, à lá Erasmo e Roberto, o nosso amigo corajosamente sobe ao palco.
Silêncio total na plateia!
Logo ouve-se o som da guitarra e a suavidade da voz acompanha, um pouco triste, a nosso ver, e não sabíamos se era a emoção da música ou a tristeza de saber-se um “boi indo pro matadouro”.
A música vetada estava sendo cantada e o som não foi cortado em respeito ao público que se pendurava até nos cajueiros que beiravam a praça esportiva momentaneamente abrigando o patíbulo do nosso amigo.
O Dionaldo definitivamente nos traíra. O que houve?
A direção da escola estrategicamente sentada numa mesa comprida perto do palco, começava a se ouriçar. Rostos carrancudos, sussurros ao pé do ouvido, a punição era certa. Suspensão ou expulsão?
Pasmem!
No momento da fatídica frase nosso amigo fiel, numa saída digna das belíssimas “pontes” que fazia como goleiro buscando a bola lá onde a “coruja dorme”, recupera a nossa admiração e surpreende a todos, cantando: “Só quero que você me dê o seu chapéu e que tudo o mais vá para o céu”.
Sua voz nunca fora tão doce a nossos ouvidos.
O show terminou aí, nada mais havia na festa que fosse interessante.
O Dionaldo, aplaudido delirantemente pela direção da escola, saiu carregado nos braços da plateia.
Alguém lembra disso?
— * Helvecio Santos é advogado e economista. É santareno e mora no Rio de Janeiro, de onde escreve regularmente para este blog.
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Lembro dos cajueiros….saudoso Instituto Batista de Santarém
Trabalhei no Colégio Batista durante o primeiro semestre de 1971, na época, Ginásio Batista de Santarém. Dava aula de desenho. Em julho daquele ano quando viemos para Porto Alegre, eu e o Milanês, trouxemos uma carta na qual a professora Onésima nos apresentava ao seu irmão, Sr. Obal Barros. Ele nos colocou em contato com seu filho Jelsias que cursava Eng. Elétrica na UFRGS e foi muito atencioso conosco. Com o tempo perdemos o contato, mas sou muito grato a essas pessoas.
Obrigado pela correção. Sempre pensei que formassem casal. Agora vejo a explicação porque a Professora Onésima tem o mesmo sobrenome dele. Uma boa semana.
Professora Onésima era irmã d Pr. Sóstenes e nao esposa.
Muito bom
E o que tem se o carinha mora no Rio de Janeiro? Escreve melhor que os outros?
Não sei se confundi a pontuação, mas entendi que Sóstenes e Onesima, seriam cônjuges. Na verdade eram irmãos. Abraço.
Amigo Edmar, sempre pensei que o Pastor Sóstenes e a Professora Onésima fossem casal. Obrigado pela correção! Vou lembrar do nosso tempo de Dom Amando e pensar que vc me deu uma “cola”, mesmo tendo entre nossas carteiras a do meu mano Eriberto, a do Francisco Juvenal e a do Gervásio. Esqueci de alguém? Grande abraço e mais uma vez, obrigado!