por Walace Gomes Leal (*)
O cérebro é, certamente, uma das estruturas mais complexas que existe, pois contém cerca de 86 bilhões de neurônios e trilhões de sinapses (unidades computacionais pelas quais os neurônios se comunicam um com o outro) capazes de gerar consciência.
Nenhuma máquina, mesmo com a mais avançada tecnologia, rivaliza com a capacidade computacional do cérebro humano. Ele possui diversas funções sensoriais, motoras e cognitivas complexas que são um produto das interações físicas entre os neurônios, formando circuitos neurais complexos.
O cérebro constrói um modelo da realidade nos permitindo ver, ouvir, sentir objetos pela percepção tátil, sentir o cheiro ou gosto das substâncias do mundo, pelo que chamamos sistemas sensoriais.
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Para isso, existem pequenos transdutores biológicos (em tecnologia, um equipamento que é capaz de transformar uma forma de energia em outra) na retina, no ouvido interno, na língua, por dentro das aberturas olfatórias (nariz) e na periferia do corpo: pele, ossos, músculos, superfícies dos órgãos (fígado, rim, pulmão, coração e outros).
Estes transdutores biológicos transformam os estímulos físicos como a luz (uma onda eletromagnética), som (uma onda mecânica formada por zonas de compressão e rarefação de moléculas de ar), os estímulos olfatórios no ar, ou as substâncias do paladar, em atividade neural (impulso nervoso) que se propaga por vias neurais específicas para serem interpretadas em regiões específicas do córtex cerebral, uma final camada na superfície do cérebro, mais desenvolvida em mamíferos e atingindo o ápice no cérebro humano.
O cérebro, apesar de possuir diversos mecanismos para a manutenção da sua integridade física, também é acometido por doenças.
Diversas doenças, agudas e crônicas, acometem o sistema nervoso central (SNC), ou seja, o cérebro e a medula espinhal. São exemplos de desordens neurais agudas, o acidente vascular cerebral (AVC), um problema de saúde pública no Brasil, e os traumas da medula espinhal (trauma raquimedular) e do cérebro (cranioencefálico).
As doenças neurodegenerativas crônicas mais conhecidas são as doenças de Parkinson, Alzheimer, Huntington, Esclerose Múltipla, Esclerose Lateral Amiotrófica e Epilepsia. Existem também as doenças da mente, as chamadas desordens afetivas, como depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. Essas desordens afetivas alteram algo fundamental para a sobrevivência humana: o prazer pela vida, a motivação, a vontade de viver.
Desordens afetivas como depressão e ansiedade afetam cerca de meio bilhão de pessoas no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), independente da classe social ou profissão.
Pode-se dizer que a depressão é o novo mal do século, como a tuberculose foi no século XIX e no início do século XX, uma desordem afetiva incapacitante que tira as forças e a vontade de viver – umas das principais causas de suicídio. Metade das pessoas que se matam, tem depressão.
Estudos científicos recentes sugerem que os chamados “centros de recompensa”, regiões cerebrais que medeiam as sensações de prazer e felicidade, estão inibidos na depressão por neurônios presentes em um pequeno núcleo cerebral chamado habênula lateral 1.
Estudos usando animais de experimentação mostraram que a cetamina, mais conhecido como um anestésico geral, possui um potente efeito antidepressivo que ocorre muito rapidamente e age, pelo menos parcialmente, inibindo neurônios da habênula lateral, portanto, desinibindo os centros de prazer, tornando a pessoa mais feliz.
Nos EUA, a Food and Drug Administration (FDA), a Anvisa deles, aprovou um spray de escetamina, um derivado da cetamina, que diminui os sintomas de depressão e ideações suicidas (pensamento de suicídio) a partir de 24 horas em humanos. Pena que o preço desse spray não será nada em conta quando ao chegar ao Brasil. No momento, custa cerca de 18.000 mil reais por mês de tratamento nos EUA.
Uma das grandes descobertas deste século sobre a função cerebral é que o cérebro adulto, mesmo de humanos, produz novos neurônios (neurogênese adulta), mesmo em pessoas de 90 anos, em regiões cerebrais específicas como o hipocampo 2-4.
O hipocampo, cavalo marinho em grego, é conhecido por ser importante para memória espacial, de eventos e acontecimentos, mas também para aspectos emocionais. Isso confirmou achados prévios de Joseph Altman e seus colegas do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) nos EUA, na década de 60 5, que sugeriram a existência dos “microneurônios,” neurônios novos formados no hipocampo de roedores.
Levaram 30 anos para acreditar em Joseph Altman e nos outros pesquisadores que sugeriram que o cérebro adulto possui neuroplasticidade, ou seja, a capacidade de dinamicamente adaptar-se a novas situações por modificação da sua estrutura interna, incluindo a produção de novos neurônios após o nascimento.
Estes novos neurônios são conhecidos como neuroblastos e a produção contínua dos mesmos no hipocampo parece importante para o bem estar mental, como discutimos em artigo recente de divulgação popular 6.
Em animais de experimentação submetidos à estresse crônico experimental há uma diminuição da produção dos novos neurônios hipocampais e isso gera sintomas de depressão e ansiedade. O animal fica imóvel, para de andar e fica apático. O aumento experimental do número desses novos neurônios no hipocampo de roedores como ratos e camundongos reverte esse quadro e diminui os sintomas de ansiedade e depressão.
Em 1999, a pesquisadora Henriette van Praag e seu colega Fred Gage do Instituto Salk da Universidade da California em San Diego (EUA) mostraram que camundongos que correm em rodinhas adaptadas às suas caixinhas no laboratório apresentam mais neurônios no hipocampo 7. Estudos posteriores mostraram que estes novos neurônios sobreviviam mais no hipocampo, quando os animais aprendiam algo novo.
Diversas funções foram propostas para estes novos neurônios produzidos no hipocampo adulto, incluindo “separação de padrões”, esquecimento fisiológico e flexibilidade cognitiva. 8 A separação de padrões é a capacidade de separarmos na memória eventos ou locais parecidos.
Por exemplo, um jogador do São Raimundo fez quatro gols de cabeça nos últimos quatro finais de semana, muito parecidos. O jogador da Pantera consegue separar na memória as quatro situações, como eventos distintos.
Já a flexibilidade cognitiva é capacidade de adaptar-se a novas situações, um tipo de capacidade criativa para achar uma solução para um problema inesperado, o que difere da rigidez cognitiva. Roedores que tiveram uma diminuição experimental da neurogênese hipocampal têm dificuldades de executar tarefas que tenham um paradigma diferente daquele que normalmente estavam acostumados a fazer.
Em humanos, os eventos da vida podem ser interpretados de forma errônea se houver déficit de separação de padrões e flexibilidade cognitiva, o que pode levar ao sofrimento psíquico.
Segundo os neurocientistas Christoph Anacker e Renè Hen da Universidade Columbia em Nova York, a separação de padrões e a flexibilidade cognitiva podem estar alteradas em humanos em doenças como depressão e ansiedade, o que pode contribuir para alguns sintomas destas doenças, como a ruminação negativa, ou seja, a reverberação de pensamentos negativos que pessoas com estas desordens afetivas têm.
Nestas pessoas, o estresse crônico contribuiria para a morte dos novos neurônios formados no hipocampo, o que diminuiria a resiliência ao estresse e o controle hormonal deste fenômeno, contribuindo para a gênese de depressão e ansiedade.
Em um experimento feito em roedores, estes pesquisadores mostraram que uma contínua e adequada produção de novos neurônios no hipocampo adulto contribui para a resiliência ao estresse, pois os mesmos participam de circuitos neurais que modulam o hipotálamo, uma região cerebral que controla a liberação de hormônios de estresse, como corticosteroides, na glândula suprarrenal ou adrenal.
Sabe-se que pessoas com depressão crônica têm uma diminuição do volume do giro denteado, a parte do hipocampo onde a neurogênese adulta ocorre, mesmo em humanos. Além disso, alguns antidepressivos diminuem os sintomas de depressão ao induzirem um aumento da neurogênese hipocampal, revertendo a diminuição do volume de estruturas cerebrais.
Se a produção de novos neurônios no hipocampo é importante para controlar os sintomas de depressão e ansiedade em humanos, então atividades que aumentem essa neurogênese poderiam ser benéficas no controle destas desordens afetivas. Existem evidências cientificas recentes a mostrando que a prática contínua de exercício físico é um poderoso indutor de neurogênese hipocampal e, portanto, uma arma poderosa no combate à depressão e ansiedade 8-10.
Além disso, a prática de exercício aeróbico pode ser associada com técnicas de meditação, como Yoga e mindfulness (atenção plena) para maximizar os efeitos sobre a neurogênese 8-9.
Este princípio vem sendo usado pela neurocientista e professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, nos EUA, Tracey Shors. Ela desenvolveu a técnica do MAP-Training (meditation and physical training) que faz que pacientes com desordens afetivas realizem, algumas vezes na semana, um protocolo que envolve técnicas de meditação e exercícios aeróbicos para reduzir sintomas de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático 8-9.
No protocolo MAP-Training, os psicólogos usam dança coreografada como a zumba, além de caminhadas, como método de exercício aeróbico. Em algumas publicações, os cientistas americanos relataram que mulheres moradoras de rua vítimas de abuso sexual, violência e pobreza extrema apresentaram diminuição de sintomas de ansiedade e depressão 8-9.
Em um outro estudo, os pesquisadores mostram resultados semelhantes em estudantes de medicina americanos sofrendo de ansiedade 9. Estes resultados foram apoiados em artigo recente publicado no famoso periódico americano Science mostrando que roedores mais velhos e humanos idosos que praticam exercício regularmente tem a liberação de uma enzima do fígado na corrente sanguínea que parece mediar reações bioquímicas sistêmicas que influenciam a liberação de fatores tróficos no cérebro e contribuem para o ganho cognitivo. 10. Eu discuti estes achados em uma publicação recente de divulgação popular 11.
Considerando que a prática regular de exercícios físicos aliada à meditação pode influenciar a neuroplasticidade cerebral e minimizar os sintomas ou mesmo curar desordens afetivas como depressão ansiedade, recomenda-se que estas atividades possam ser efetivadas diariamente em nossas vidas para uma melhor saúde mental.
Certamente, intervenções inspiradas em estudos sobre neurogênese adulta tornar-se-ão, cada vez mais, uma realidade e importante ferramenta em psicologia e psiquiatria.
Referências
1Ketamine blocks bursting in the lateral habenula to rapidly relieve depression. Yang Y, Cui Y, Sang K, Dong Y, Ni Z, Ma S, Hu H. Nature. 2018 Feb 14;554(7692):317-322. doi: 10.1038/nature25509.
2 Boldrini M, Fulmore CA, Tartt AN, Simeon LR, Pavlova I, Poposka V, Rosoklija GB, Stankov A, Arango V, Dwork AJ, Hen R, Mann JJ. Human hippocampal neurogenesis persists throughout aging. Cell Stem Cell 2018; 22:589-599.
3 Moreno-Jiménez EP, Flor-García M, Terreros-Roncal J, Rábano A, Cafini F, Pallas-Bazarra N, Ávila J, Llorens-Martín M. Adult hippocampal neurogenesis is abundant in neurologically healthy subjects and drops sharply in patients with Alzheimer’s disease. Nat Med 2019; 25:554-560.
5 Altman J, Das GD. Autoradiographic and histological evidence of post-natal hippocampal neurogenesis in rats. J Comp Neurol 1965; 124:319-335.
4 Lima SMA, Gomes-Leal W. Neurogenesis in the hippocampus of adult humans: controversy “fixed” at last. Neural Regen Res 2019; 14: 1917-1918.
6 Gomes-Leal W. Novos neurônios para o bem estar psíquico. http://www.diretodaciencia.com/2020/08/09/novos-neuronios-para-o-bem-estar-psiquico/
8 Anacker C, Hen R. Adult hippocampal neurogenesis and cognitive flexibility – linking memory and mood. Nat Rev Neurosci 2017; 18:335-346.
7 van Praag H, G Kempermann, F H Gage. Running Increases Cell Proliferation and Neurogenesis in the Adult Mouse Dentate Gyrus. Nat Neurosci 1999; 3: 266-70. doi: 10.1038/6368.
8 Shors TJ, Olson RL, Bates ME, Selby EA & Alderman BL Mental and physical (MAP) training: a neurogenesis-inspired intervention that enhances health in humans. Neurobiol Learn Mem 2014; 115: 3–9.
9 Millon EM, Shors TJ. Taking neurogenesis out of the lab and into the world with MAP Train My Brain™. Behav Brain Res 2019; 30: 376:112154. doi: 10.1016/j.bbr.2019.112154
10 Horowitz AM et al. Blood Factors Transfer Beneficial Effects of Exercise on Neurogenesis and Cognition to the Aged Brain. Science 2020; 369 :167-173. doi: 10.1126/science.aaw2622.
11 Gomes-Leal W. Proteína do fígado liberada no sangue após exercício induz ganho cognitivo. http://www.diretodaciencia.com/2020/07/27/proteina-do-figado-liberada-no-sangue-apos-exercicio-induz-ganho-cognitivo/
— * Walace Gomes Leal é neurocientista e professor do Instituto de Saúde Coletiva da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará).
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