Humor e ironia

Publicado em por em Política

por Cristovam Sena (*)

Em 1968, quando deixei Santarém e fui estudar e jogar futebol em Belém foi que tomei conhecimento da genialidade artística de Millôr. O golpe militar estava em efervescência, o AI-5 funcionando a pleno vapor. Nas faculdades, alunos considerados perigosos comunistas infiltrados no meio estudantil eram presos todas as vezes que uma autoridade fardada vinha visitar Belém. Presos incomunicáveis, até que a visita retornasse para a capital federal.

Foi nesse ambiente que em 1969, ano particularmente duro do regime militar, tomei conhecimento da existência do Pasquim, tablóide que nasceu da criatividade e irreverência de Ziraldo e Jaguar, secundado por outros “cobras” da ironia e bom humor.

Lia com prazer tudo o que era produzido por eles, pois representava uma nova forma de jornalismo que não conhecíamos por aqui, principalmente por azucrinar a ditadura, coisa inconcebível para os jornais do eixo Rio/São Paulo que, por conveniência ou censura, permaneciam ainda alinhados com o poder que emanava de Brasília. E eram eles que repercutiam as notícias pelo país.

Comprava o Pasquim na banca do Plínio, torcedor do Paysandu, localizada na Av. Presidente Vargas, em frente ao prédio dos Correios. Após ler, enviava para o Boanerges Sena em Santarém, que passou a me cobrar quando atrasava alguma remessa. Isso até 1974, quando aos 56 anos o alfaiate foi tragado pelo cigarro.

Do Pasquim passei para os livros. Naquela época, ler Millôr deixou de ser um passatempo e passou a ser quase que obrigação. Suas frases curtas soavam como tratados de filosofia, sociologia, de política. E continuam atuais. Sem prazo de validade, não prescrevem nem perdem força: Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.

Nesse mesmo período, Nelson Rodrigues, o “Anjo Pornográfico”, desnudava as entranhas da elite carioca e brasileira com “A vida como ela é”, onde mostrava seus incestos, pedofilias e homossexualismo que todos fingiam que não existiam entre eles; João Saldanha, o “João sem Medo”, revelava o submundo da cartolagem da bola com “Os subterrâneos do futebol”, do qual Ricardo Teixeira é o símbolo maior; enquanto Millôr, o gênio do humor inteligente, polemista, democrata extremado, nos induzia a pensar: “Livre pensar, é só pensar.”

Para ele, não existia sabedoria, conceito ou verdade que não admitisse reexame ou nova interpretação. Ele conseguia transformar verdades consumadas em dúvidas que levavam as pessoas a olharem o mundo sob novas perspectivas: Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. E Millôr nos advertia que Cristo andou com Judas.

Pegava pesado com a esquerda de qualquer quadrante: “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim.”

“Rouba já! Amanhã pode ser ilegal”. Os atuais noticiários da imprensa mostram que esse amanhã do Millôr está ficando cada dia mais distante.

“A lei é a melhor forma de se burlar a justiça”. A sentença do advogado Amilcar Guimarães no processo do Lúcio Flávio Pinto ilustra bem esse pensamento do Millôr.

Em 1970, um ateu a caminhar entre as idéias sobre o progresso da humanidade: A verdade é que todo o progresso da humanidade não depende, como querem religiosos de um lado e fascistas de outro, de crenças profundas, de princípios arraigados, de religiões místicas ou econômicas. Todo o progresso da humanidade se deve unicamente à descrença, ao ceticismo. Desconfiar é progredir.

No mesmo ano, discorrendo sobre a importância da liberdade: Quem quer a liberdade? A liberdade exige decisões pessoais para todos os dilemas diários: saio, não saio, vou, fico, o que é que eles estarão querendo dizer com isso?, como é que eu devo agir em função disso? A cada ato, cada desastre, cada notícia, corresponde uma atitude definida e um esforço para que o ser normal não foi adequado. Só um tarado (Liberal) aprecia a liberdade total. O homem médio prefere se entregar a prepostos, ama despachantes, obedece a mestres, serve a diretores, mitifica líderes. A própria constituição humana está talhada para a limitação. É evidente que Deus fez o homem com a cabeça maior do que o corpo para ele não poder passar por entre as grades. Quer coisa mais atual do que isso?

Por fim, pegando pesado com os políticos: “Meu sonho é que algum deputado contraia aftosa… porque nesses casos, tem-se que sacrificar o rebanho.”

Alguém já disse que devemos tratar o humor irônico e inteligente do Millôr como gênero de primeira necessidade. Primeiro porque ensina o homem tenso e apressado a sorrir de novo. Depois, porque recorda a todos nós que é possível filosofar em meio à luta pela sobrevivência. Não importa se você acredita na teoria da evolução de Darwin ou no mito de Adão e Eva.

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* Santareno, é diretor-fundador do ICBS (Instituto Cultural Boanerges Sena). Escreve regularmente neste blog.


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Santareno, ex-jogador de futebol, é engenheiro florestal e nº 1 do ICBS (Instituto Cultural Boanerges Sena).

11 Responses to Humor e ironia

  • Meu amigo Cristóvam! você é Flatástico e ainda joga no nosso CN.
    Infelizmente a vacina contra aftosa antes de passar pelas vacas, é aplicada neles. Daí! é difícil disseminar este rebanho podre.

    Abração em vc e no Jeso.

  • Mais que ler a bela crônica do meu amigo Cristovam Sena, é ler também os comentários de seus seguidores, na qual eu também me incluo. Quando criança, trabalhei na Farmácia do Povo na rua Lameira Bitencourt, onde entre os comentários diários de seu Balão, meu pai, nosso saudoso Fernando Matos, filho do João Otaviano, era assíduo leitor do Pasquim e de outros jornais e revistas de protesto e humor da época. Hoje na Ufopa, recordo que aprendi a gostar de ler e escrever ouvindo as histórias de mestre Balão, regadas pelas tiradas de tudo o que acontecia no esporte (ali se discutia na segunda-feira, cada lance das partidas do Botafogo, Fluminense, Remo, Paisandu e claro São Francisco e São Raimundo), na cultura, na política e claro, na ladroagem, todas elas com o pintar dos mestres da escrita como Millor e Nelson Rodriguês. Parabéns confrade, você só já é uma confraria, com as histórias do Millor, viras uma enciclopédia de humor, ironia e sabedoria. Na assembleia de hoje na Ufopa, um professor setenciou: quem não luta pelo direito que tem, não merece tê-lo. Foi isso que esses mestres da escrita nos ensinaram: lutar pelo direito de expressão de nossa integridade. Continue a escrever suas belas crônicas que nos fazem refletir e rir.

  • Cristovam,
    Você me faz ter uma inveja boa do seu talento na escrita, maravilhosa esta leitura. Provocaste a lembrança “daqueles dias” do AI-5 e do Decreto Lei 477. O Pasquim era leitura obrigatória, e escondida dos “milicos” do SNI que sempre suspeitávamos ter algum infiltrado em nossas salas de aula na faculdade.

  • O Cristóvam é assim. Quando a gente pensa que está seguro vem ele e nos desbanca. Uma época eu dizia que estava torcendo, mesmo que entortando o nariz, por um time aí de Santarém, justificando que assim estava torcendo por Santarém e por inúmeros amigos. Veio ele e, num belíssimo artigo, disse que era a rivalidade (sadia, óbvio) que sustentava o gosto pelo futebol. Se não houvesse mais rivalidade e todos torcessem por um só, o meu querido time estava fadado a se tornar peça de museu. Pensei e, atendendo à sábia observação, fiquei somente no AZUL, mesmo que, à época, meu AZUL estivesse no início da escadaria. Agora vem ele com esse texto! Não vou dar parabéns pois o Cristóvam é assim, sempre merece parabéns e isso seria chover no molhado. Maravilha, querido amigo, te devo a visita. Até o final do ano deixarei de ser devedor. TAPAJOARAMENTE,

  • O Senhor Cristóvam disse tudo. Millôr deixou o legado do humor intrigante e reflexivo, sua falta nos deixa sem riso inteligente!!!!!

  • Parabéns, Cristóvam!!

    Sua articulação nos remete a profundas reflexões, acerca dos desmandos políticos, perenemente arraigados em nosso País! Por outro lado, nos delicía com as lembranças dos produtos geniais oriundos do humor sátiro de Millôr que, originariamente, deveria ser Milton (Mil Tonalidades)!

  • E em pleno abril Millôr esbraveja: “Viva o Brasil, onde o ano inteiro é primeiro de abril”. Cristovam, como sempre, nos premiando com belo textos.

  • Excelente esta reflexão do Cristóvam. Millôr era isso aí, e o seu desaparecimento obteve pouquíssima repercussão na sociedade porque, como diria o Mestre Balão, a maioria das pessoas é analfabeta, ainda que saiba ler. Mesmo Chico Anysio só teve maior repercussão porque fazia humor na televisão. Duvido que, em rodadas de boteco, Millôr seja lembrado. E mesmo Chico. Uma pena e um sinal de que nosso humor ainda é maciçamente chulo, piadas monossilábicas, sem aquela malícia do relato engraçado e sério ao mesmo tempo. Nada mais sério do que o humor inteligente. Mais fácil ouvir-se alguma coisa de Renato Aragão e das caretas do Costinha. Bons humoristas também, que se enquadram naquela categoria do humor fácil e que dispensam a reflexão. E não me refiro apenas ao humor consumido/produzido por aquele grupo social pejorativamente chamado de “povão”, mas pela elite também. Aliás, essa elite que se diverte não com a cabeça e a sensibilidade estética, mas com a barriga, basta ler os diálogos no facebook publicados no Eu Acuso do Lúcio Flávio. Vão a Paris comer e voltam dizendo ter entrado em teatros e degustado cultura. Vão, sim, apenas para dizer isso na volta. Não digo estas coisas para defender a existência de uma sociedade intelectualizada, apenas uma sociedade majoritariamente inteligente. Precisamos do humor que nos faça rir e não apenas gargalhar!

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