Um lead canalha

Publicado em por em Política

por Samuel Lima (*)

A morte do historiador Eric Hobsbawm, no dia 1º de outubro recebeu, por parte do mais importante telejornal brasileiro, um tratamento que transitou entre a indignidade e o lead canalha.

Há uma exceção, em outra emissora, que indico a seguir. Hobsbawm, um intelectual de sólida formação marxista, faleceu em Londres, aos 95 anos, legando à humanidade uma vasta obra sobre as transformações provocadas pela chamada globalização – na série “A Era das Revoluções” (do Capital, dos Impérios, e dos Extremos).

Humanista, de origem judaica (nasceu no Egito, em 9 de julho de 1917), Hobsbawm tornou-se um dos maiores intérpretes do seu tempo, do ponto de vista das ciências sociais e humanas. Publicou mais de 30 obras, alcançando reconhecimento internacional. O historiador foi militante do Partido Comunista inglês.

Na edição do Jornal Nacional (TV Globo), essa figura humana de rara estirpe foi assim traduzida num lead canalha:

Comunista, contestador, intelectual: foi com essas credenciais que Eric Hobsbawm fez história. Analisou profundamente a chamada luta de classes entre patrões e empregados. De herança, deixou várias obras sobre as transformações econômicas e sociais nos últimos 200 anos: “A era das revoluções”; “A era do capital”; “A era dos impérios”; “A era dos extremos”. Também escreveu o best seller ‘História social do jazz”. Foi estrela da primeira edição da Festa Literária de Paraty, em 2003. Na época, disse que ”o maior desafio da humanidade é enfrentar os americanos que acreditam não ter limites. (grifo nosso). (Fonte: https://migre.me/aYTwx)

O texto, da lavra do repórter Marcos Losekann, correspondente da TV Globo em Londres, é de um reducionismo vulgar, que desrespeita a memória do historiador e desqualifica sua contribuição à história do pensamento contemporâneo. No total, a “nota coberta” resume o legado de Eric John Ernest Hobsbawm em pífios 1.026 caracteres (pouco mais de um minuto e vinte segundos).

Não há repercussão, na cobertura global, em nenhum lugar do planeta. No limite, o texto de Losekann contrasta profundamente com a chamada da apresentadora que assim enunciou a matéria: “Morreu nesta segunda-feira (1º), em Londres, um dos maiores pensadores do século XX: o historiador Eric Hobsbawm. Ele foi vencido por uma pneumonia aos 95 anos”. Para ser mais caricato faltou apenas apelar para um clichê: “ateu”.

Num rápido paralelo, a mesmo acontecimento foi assim anunciado e enunciado pelo Jornal da Band (Ricardo Boechat): “Um dos maiores intelectuais do século XX, o historiador Eric Hobsbawm morreu em Londres. Ele tinha 95 anos e estava internado com pneumonia”. O texto da “nota coberta” está focado na obra “A Era dos Extremos”, talvez seu legado maior:

Entre os mais de 30 livros está “A Era dos Extremos”, que conta a História, a partir da Segunda Guerra, até o fim da União Soviética (no começo dos anos 1990). A obra foi traduzida para mais de 40 línguas. Marxista, o escritor de origem judia, enfrentou o nazismo de Adolf Hitler e foi membro do partido comunista da Inglaterra. (Fonte: https://migre.me/aYUJZ)

A hierarquia das informações desnuda o viés antijornalístico do lead veiculado pelo Jornal Nacional. No âmbito da chamada produção social de sentidos, temos mais um exemplo de como o Jornalismo pode ser usado para desinformar o distinto público, pisoteando memórias e reputações.

Convém registrar, como escreveu Miquel Rodrigo Alsina (em “A construção da notícia”) essa relação indissociável entre acontecimento e notícia:

Todo fato social é um acontecimento em potencial para a mídia e toda notícia é um acontecimento em potencial para a sociedade. A partir dessa perspectiva, podemos compreender muito melhor a interação entre mídia e sociedade. A mídia lança mão de acontecimentos sociais [no caso, a morte do historiador] como a matéria-prima, e, ao mesmo tempo, constrói e transmite um produto que pode chegar a se tornar um acontecimento social. (op. cit. p. 134)

A notícia sobre a morte de um dos maiores intelectuais do planeta, nessa passagem de milênio, exigiria mais qualidade jornalística, além da sobriedade e o respeito in memorian que qualquer ser humano merece.

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* Santareno, é docente da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). Professor-visitante do curso de jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS. Escreve regularmente neste blog.


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11 Responses to Um lead canalha

  • Defender que Stálin poderia pelo menos ter feito adubo dos cadáveres para melhorar a produlção agrícola é ser humanista?

  • Samuel, suas “passagens” por este blog são muito importantes.

    Lendo seu texto lembrei de duas frases que retratam muito bem o dano que certa mídia causa em certas pessoas.

    A primeira:

    “Se você não cuidar, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo.” Malcoml X

    A segunda:

    “Uma imprensa cínica, mercenária e demagógica, com o tempo, produz pessoas igualmente cínicas, mercenárias e demagógicas”. Joseph Pulitzer

    1. O pior é viver acreditando em teorias conspiratórias…..os cínicos são ao menos divertidos e inteligentes…Diferente de um monte de gente que se mete a decorar discursos e frases feitas acerca de um mundo que a história já mostrou como impraticável.

      Já que gosta de frases feitas, veja alguns exemplos acerca de viver colocando a culpa por tudo nos outros:

      “O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros.” Confucio

      “Invejo as pessoas que bebem. Pelo menos têm alguma coisa em que botar a culpa.” Oscar Levant

      “Errar é humano. Botar a culpa nos outros também.”
      Millôr Fernandes

      E assim vai….

  • O muro de Berlim caiu tem tempo, companheiro! E vai dar Capriles na Venezuela! Vai sobrar Cuba pra ti…

  • Aposto como esse senhor, que tanto crítica a globo, fica assistindo o Jornal Nacional à espera da Novela avenida Brasil para acompanhar o epílogo da trama da carminha com o tufão (está emocionante). Quando não temos um controle remoto na sala, até o cabo de vassoura serve para trocarmos o canal de televisão.

    Dependendo do que é exibido, até o arremesso de um xinelo nos dá o direito a liberdade de opinião e de imprensa, mas impor aos outros o que queremos que seja exibido é um absurdo e tirania ideológica. Não existe unanimidade, mas existe o senso comum de que cada macaco deve ocupar o seu galho.

    Os galhos das árvores foram feitos para suportarem macacos, não dinossauros que sobreviveram a queda do grande meteoro que implodiu o modelo de vida e econômica pregados pelo pensador foco do texto. Mil vezes melhor assistir a carminha e o tufão a tirania do politicamente correto

  • Somente pela via de uma educação de qualidade e humanística, é que o povo saberá fazer sua análise crítica sobre os noticiários da grande imprensa.Não consigo vislumbrar outro viés!!!. Parabéns prof. Samuel pelo texto no contexto

  • Eu ainda sou a favor da maior de todas as censuras: o controle remoto. Se eu quiser ouvir loas a Hobsbawn, verdadeiramente uma biografia indispensável para se compreender o século XX, tenho nas mãos uma arma maravilhosa. Simples assim.

  • Meu caro,
    A interpretação popular para o termo liberdade de imprensa é: “publico o que eu quero e de acordo com meus interesses comerciais, não de acordo com as convicções ideológicos de meia dúzia de lunáticos que encontram-se presos ao século passado”. Capiche !!!!

    Acho que deu um espaço até grande demais.

  • Samuel, vc sabe que o povo que assiste aos nossos telejornais não são intelectuais e nem tem sua inteligência, então o jornal é feito para a maioria. E acho seria melhor falar que ele era ateu, seria uma forma de ajudar, neste momento de eleições, aos nossos jovens que pararam de pensar e vivem dentro de igrejas, que são currais eleitorais de evangélicos. Vc Samuel que estudou ciência quando jovem e escreve como poucos poderia nos brindar um dia com uma análise sobre esse assunto. E ele morreu com mais de noventa anos então está perdoado por ter sido comunista.

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