Reprimarização econômica, neoextrativismo e tragédia indígena. Por Válber Pires

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Reprimarização econômica, neoextrativismo e tragédia indígena. Por Válber Pires
Crianças yanomamis subnutridas em Roraima: tragédia indígena. Fotos: Reprodução

A tragédia indígena recente no Brasil é reflexo do modelo de desenvolvimento adotado pelo país no contexto do neoliberalismo e da globalização capitalista a partir dos anos de 1990. Esse modelo é baseado num processo de reprimarização econômica, da qual faz parte o neoextrativismo madeireiro e mineral.

Quando esse processo se alia a um governo de mentalidade neocolonial, a tragédia é inevitável.

O Brasil ingressou na globalização econômica e na geopolítica neoliberal com a abertura de sua economia desde o período Collor, processo que se aprofundou com Fernando Henrique Cardoso e se manteve nos governos de Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro.

Essa abertura econômica significou o desmonte de grande parte do parque industrial brasileiro. A perda da participação da indústria na formação do Produto Interno Bruto (PIB) e na oferta de empregos levou a dois movimentos para perseguir o crescimento e equilíbrio econômico: o aprofundamento da financeirização da economia e o favorecimento de atividades primárias nas quais o país possui vantagens comparativas sobre outros países, principalmente pecuária, agricultura e mineração.

A reprimarização da economia, na qual se destacam a produção de carne bovina, soja e ferro, também foi acompanhada da expansão de inúmeras outras atividades agrícolas, pecuárias e extrativas mineral – ouro, manganês, bauxita, cobre, níquel – e vegetal – madeira.

O avanço das atividades extrativas – mineral e vegetal – e o aumento da sua importância na economia dos principais estados da Amazônia e na geração de divisas para o Brasil caracteriza o que a literatura sociológica e econômica tem chamado de neoextrativismo.

Geopolítica neoliberal se manteve nos governos Lula

O aumento das ameaças contra as comunidades indígenas do Brasil é proporcional ao fortalecimento da reprimarização e do neoextrativismo. Tanto o agronegócio quanto mineradoras e madeireiras tem pressionado e ameaçado as populações indígenas por seus interesses sobre as riquezas naturais dos territórios destes povos: os primeiros querem suas terras, os segundos, seus minérios e, os terceiros, suas árvores.

Há um quarto agente que merece nota aqui: as igrejas evangélicas. Elas não disputam, simplesmente, almas para seus rebanhos, mas, principalmente, como é de praxe, riquezas.

Os “missionários” não somente intermediam acordos entre essas comunidades e mercenários como, também, pressionam os indígenas para extorquir grandes empresas, tudo com o objetivo de ganhar sua propina ou seu “dízimo”. Mas, isso será tema de outro artigo.

De volta ao tema, os riscos às populações nativas e tradicionais deste modelo primário-extrativista de desenvolvimento são muito elevados por questões óbvias: como as terras indígenas concentram grande quantidade de riquezas naturais é inevitável que a cobiça empresarial – ou de trabalhadores de baixa qualificação e desempregados – se projete sobre elas de forma selvagem.

Na tentativa de atenuar o impacto e frear o ímpeto empresarial sobre as riquezas naturais dos territórios indígenas, os governos de FHC, Lula e Dilma investiram em estratégias de sustentabilidade que previam, dentre outras, proibição do uso predatório dos recursos naturais destes territórios, fiscalização continuada, assistência de saúde e educacional diferenciadas, fomento ao desenvolvimento local e endógeno.

Buscava-se, com isso, conciliar economia primária e extrativista com o desenvolvimento sustentável. No entanto, mesmo nos governos destes três presidentes este jogo não era fácil de manobrar. Posteriormente, deteriora-se.

A partir de 2016, no governo Temer, o Brasil experimenta uma radicalização do neoliberalismo, que entra numa fase ultraliberal. Uma das características do ultraliberalismo foi exatamente a precarização de todas as políticas sociais, trabalhistas e a exclusão das minorias sociais e étnicas do foco e do centro das políticas estatais.

Com Bolsonaro houve a radicalização desta exclusão. No caso específico dos povos indígenas, estes foram abandonados pelo Estado: o presidente desmontou a Funai, que perdeu, até mesmo, sua função de demarcar terras indígenas; recursos para operações e fiscalização deixaram de ser repassados para esta fundação e para o Ibama; estimulou, em discursos, o ataque de garimpeiros, mineradores, agricultores e madeireiros a estes povos e suas riquezas naturais.

Assim como colocou na presidência da Funai um policial federal contrário aos indígenas e defensor do agronegócio; colocou na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) um pastor que apoia e atua na catequização dos indígenas; proibiu medidas adicionais de proteção à saúde indígena durante a pandemia do Covid-19.

Bolsonaro: modelo colonial com propensão ao etnocídio

Enfim, Bolsonaro retomou um modelo colonial de política indigenista, com forte propensão ao etnocídio e genocídio destas populações.

Neste contexto, as atividades primárias e extrativas assumiram conotações selvagens, dentro de um processo típico da acumulação primitiva de capital, onde todos os tipos de violência simbólica, física, cultural e social são perpetradas contra povos originários e tradicionais.

A tragédia que se viu, estes dias, com o povo Yanomami está acontecendo com outros povos originários na Amazônia e no Brasil. Os Munduruku também estão passando por isso agora.

Esta, contudo, era uma tragédia anunciada em virtude do próprio modelo de desenvolvimento primário e extrativista assumido pelo Brasil ao longo das últimas décadas.

Políticas voltadas à sustentabilidade podem ajudar a atenuar, mas ela precisa ser acompanhada de políticas econômicas que promovam a diversificação, a industrialização e a verticalização econômica para ampliar as oportunidades sociais e de investimento econômico.

Caso contrário, se um governante louco, mentalmente perturbado, ascender, novamente, ao poder, a tragédia destes povos deverá assumir proporções maiores, ser mais desumana e desonrosa para o Brasil.

<strong>Válber Pires</strong>
Válber Pires

É professor universitário, doutor em Sociologia, com pós-doutorado em Socioeconomia e Sustentabilidade. Escreve regularmente no JC.

Leia também de Válber Pires: Demissão de general evita tornar Forças Armadas em milícia bolsonarista.

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7 Responses to Reprimarização econômica, neoextrativismo e tragédia indígena. Por Válber Pires

  • Grato, Jeso, vindo de uma pessoa ilustrada como você percebo o quão importante é divulgar conhecimento científico. Abçs!

  • Em quase 50 anos de vida, vi que de tempos em tempos, a humanidade conhece tiranos e genocidas que simplesmente desdenham da vida humana, tais como Pol Pot, no Camboja; Josef Stalin, na União Soviética; Adolf Hitler, na Alemanha; Mao Zedong, na China e Slobodan Milosevic, na Iugoslávia. Nenhum deles era do continente americano, embora saibamos que houve genocídio em terras americanas, como o que aconteceu com os povos que aqui viviam quando da chegada dos invasores (colonizadores). Mas eis que o século XXI trouxe mudanças, notadamente no âmbito político, o território mais propício para o surgimento de figuras desprezíveis, como um tal Jair Messias Bolsonaro, que em 2019 assumiria a presidência do Brasil e colocaria em prática uma série de ações que resultariam, por exemplo, no aumento da fome no Brasil, no aumento do desmatamento da Amazônia, no aumento da mineral ilegal…na invasão dos três poderes da República e no genocídio do povo Yanomami. Agora vejo que, assim como a Europa e a Ásia, o Brasil também viu nascer um genocida, alguém que simplesmente desdenha da vida. Lembram das frases que ele usou durante a pandemia do novo coronavírus? Pois é…. Resta-nos esperar que a justiça o alcance e o faça pagar pelas vidas que se perderam por causa das suas ações.
    Vida longa ao povo Yanomami.

  • O desgoverno fascista fazia criminalização do MST porque segundo ele, o MST era ou é invasor de terras, no entanto o genocida juntamente com a cambada de maus elementos que estavam a serviço do desgoverno, permitiram a invasão criminosa do território dos Ianomâmis.

  • Baita artigo, Válber. Esclarecedor, pedagógico, agudo nas observações econômicas e sociológicas. Relevante, oportuno e enriquecedor no que tange à questão, em particular, indígena e toda a sorte de agruras que os povos originários sofrem ao longo de décadas.

    Numa só expressão: “lente de aumento” na minha visão míope sobre a temática. Parabéns!

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