
Pensar hoje exige mais esforço do que tatear as pontas dos dedos, e convenhamos: deslizar o indicador numa tela é mais satisfatório. Porque nos poupa do silêncio constrangedor ecoando na própria cabeça, é mais fácil encarar a timeline do que os próprios pensamentos; no feed sempre tem alguém mais bonito, mais engraçado, mais feliz, mais produtivo, mais indignado que a gente.
E embora isso destrua lentamente o valor subjetivo, pelo menos distrai, é… e quem não quer um pouco de diversão por menos de um pensamento e um copo d´agua? “Pensar profundamente”, esse velho aristocrata cansado e carrancudo foi abandonado no meio do caminho, trocado por amores baratos numa corrente infinita de conteúdos que não exigem digestão, só reflexo, o polegar virou nossa função existencial mais ativa.
Leia também de Josué G. Vieira sobre redes sociais:
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E essa relação entre sujeito e algoritmo se baseia num pacto de submissão mútua, você não manda no celular e não sabe viver sem ele, é como um ex que não te faz bem, mas ainda tem sua senha do Wi-Fi. Por mais que tentem encontrar um culpado, a culpa nunca é descoberta ou declarada, mas se você se sente mal, a culpa é sua, por “não saber usar direito”.
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É o mesmo discurso de quem diz que apanhou porque provocou, surra doce que te faz dormir de “cara quente”, daí, não é você ser fraco ou o celular ser mal, o problema é esse nó afetivo e tecnológico que se aperta todo dia sem a gente perceber, até sufocar o espaço onde antes cabia o pensamento, o afeto e outras coisas mais que estavam perambulando por sua cabeça.
O algoritmo é aquele parceiro que te observa em silêncio, com olhos que nunca piscam, sabe quando você ficou mais de três segundos parado num vídeo, quando hesitou em curtir uma foto, quando rolou pra cima nervoso porque algo te incomodou. Ele não julga, aprende contigo e te faz querer os “desejos” antes que você os formule; te entrega exatamente o que você quer ver, sentir, comprar, pensar.
Não existe conflito, nem desentendimento, muito menos tédio. Mas, veja bem: num relacionamento real, isso seria um sinal de alerta, não de afinidade, pois pense, não concordas que numa relação que nunca dá trabalho, ela costuma esconder vigilância e outras coisas mais que serão “descobertas” se um lado confidenciar, mas até chegar a confidencia…
E o que parece afeto, como o vídeo da sua infância que aparece “do nada”, como o anúncio daquela sandália que você só comentou verbalmente perto do celular, acaba sendo só o jeito elegante da máquina dizer: “eu te escuto, mas só porque isso me rende lucro”.
Há algo nefando nessa mímica de cuidado, o algoritmo te quer por perto, mas não bem; quer, que você se exponha, mas não quer te conhecer. E quanto mais você acha que está no controle, mais previsível você se torna, o engano de liberdade é o açúcar que disfarça o veneno do controle emocional algorítmico.
Chamamos de liberdade aquilo que é, em essência, vigilância personalizada; vivemos o paradoxo, nunca fomos tão rastreados e tão convencidos de que somos autônomos. Se liberdade era a possibilidade de escolher, hoje virou o conforto de ser escolhido por um sistema que nos conhece melhor do que nós mesmos; ainda agradecemos, porque dá menos trabalho, não precisamos mais pensar no que queremos, já vem pronto, quentinho, envolto numa embalagem que parece amor. Só parece…
A filósofa norte-americana Shoshana Zuboff, afia suas palavras na melancolia dessa era em que a subjetividade virou produto, quando constata que a condição relacional entre humano e máquina vai além da ideia de “progresso social”, mostram que se trata de uma crise do “eu performático” e de uma transformação estrutural do capitalismo.
Em A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), Zuboff expõe como os próprios pensamentos, desejos, hesitações foram convertidos em matéria-prima para predição comportamental, o que antes era íntimo, hesitante e silencioso virou dado mensurável, previsível; o que parece um “post” espontâneo é na verdade matéria para modelagem algorítmica, cálculo do desejo e manipulação da tomada de decisões.

O “eu” deixa de ser uma construção interna e passa a ser um reflexo curado externamente; Judith Butler, pensadora de outro campo, ao conceituar “performatividade” na formação do “eu” aponta que o sujeito se constitui na repetição performática de normas, portanto nas redes não seria diferente, essa performance é diária, visual e quantificável.
A norma é o engajamento, você não é o que sente, e sim é o que os outros interpretam que você sente, há uma substituição da experiência pela visibilidade da experiência. O que não é postado é como se não tivesse existido, isso cria um mundo onde a existência precisa antes de tudo ser validada e só depois vivida.
Christopher Lasch, em A Cultura do Narcisismo (1979), visionou e antecipou esse movimento ao falar da ascensão de uma personalidade pública moldada para o consumo externo; o Narciso contemporâneo, diferente daquele da mitologia, não se apaixona por si mesmo, mas pela própria imagem refletida no espelho, que no caso, o “espelho” das redes sociais.
Esse “espelho” é coletivo, interativo, volátil, exige manutenção constante, o “curtir” se torna uma espécie de oxigênio simbólico sem a intenção de “verdade”, mas de nos salvar da irrelevância e da permanência, pois é o desejo de não desaparecer que sustenta esse ciclo exaustivo.
Ela nos devolve a angústia mais antiga da humanidade: o medo da indiferença, agora essa angústia tem endereço fixo e horário de pico, a notificação não chega e o silêncio da tela vira espelho da alma. Não vivemos para nós, mas para sermos percebidos, o que gera uma sensação constante de insuficiência, sempre devendo um pouco mais de nós mesmos ao olhar do outro. Um like a mais, um story mais interessante, um eu mais interessante, mesmo que por dentro, tudo esteja em suspenso.
O celular é mais um fim do que um meio, o espelho da tela não reflete o que somos, mas o que podemos parecer, diferente do espelho do banheiro que nos expõe com realismo brutal às olheiras, manchas e imperfeições que o corpo carrega ao acordar, a tela preta seduz porque a verdade é dispensável, ela nos devolve idealizados, filtrados, otimizados para o consumo alheio. E agradecemos, afinal, se a imagem está bonita, quem se importa com a realidade?
Mas há uma troca perversa acontecendo nesse reflexo, ao buscarmos parecer melhores para os outros, desistimos de sermos verdadeiros para nós, a estética da brevidade, da eficiência emocional, do conteúdo digerível faz com que nossas experiências existenciais mais profundas, a dor, a dúvida, a contradição se tornem impronunciáveis. E, daí?
Não cabem no feed; não rendem likes, o algoritmo não tem tempo para introspecção, prefere reações, de preferência rápidas. Assim, vamos nos moldando a esse padrão de menos humanidade, mais de atratividade algorítmica, deixamos de perguntar “quem sou?” para “como eu pareço?”
Essa mudança não é forçada, é desejada, passamos a querer o que o sistema quer que queiramos: ser breves, engajantes, resolvidos. Evitamos profundidade porque ela atrasa a performance; evitamos silêncio porque ele não viraliza, começamos a viver em função do reflexo, e quanto mais nos esforçamos para caber no espelho negro, mais nos distanciamos do espelho do banheiro.
O intimo vira espetáculo, passa a ser o centro comunitário da vida; viver sem plateia não vale a pena, é insuficiente, destampa o baú do esquecível, das falhas, das gravidades, lembra da vida por um ângulo chato, ocioso e sem novidade. Por isso, desejamos; E, o que você tem com isso?

Nessa relação abusiva de afeto eletrônico sem tapas e gritos, falta o ar existencial, a ansiedade se acumula em notificações não lidas, em mensagens visualizadas e ignoradas, em stories onde todo mundo parece feliz menos você; a comparação se infiltra como veneno incolor, o outro sempre parece estar vivendo melhor, dormindo melhor, amando melhor.
E você vai morrendo de si, intoxicado por uma imagem da vida alheia que consome como entretenimento. Ninguém te obriga a isso, mas também ninguém te protege; a máquina não para: nunca; e enquanto você dorme mal, ela continua rodando, oferecendo mais do mesmo disfarçado de novo.
O mais cruel é a proximidade do agressor, ele não está num lugar longe, não invade sua casa, ele está contigo no bolso, na mão, ao lado da cama, dorme contigo, acorda antes de você, exige carinho, te cobra atenção, te julga pelo tempo de uso, te manda avisos de “bem-estar” como quem diz “eu só quero o seu melhor”.
Mas não quer… quer seus dados, seu tempo, sua atenção fragmentada, o seu foco quebrado em mil partes, para que você nunca consiga juntar tudo e perceber o quanto está cansado, a dependência virou norma, e a intimidade virou estatística.
Antes de culpar o algoritmo, lembre-se, a rachadura já estava lá, talvez tenha começado bem antes do primeiro celular, nas ausências não nomeadas, nos silêncios familiares, nos afetos apressados, nas conversas interrompidas por obrigações, o sujeito contemporâneo, especialmente o jovem, não é apenas digital, ele é produto de uma cultura da aceleração emocional.
Não houve tempo para formar um “eu” com fôlego, tudo foi acontecendo rápido demais, escola cheia de conteúdo, com pouca escuta; famílias presentes, sem presença; um mundo exigente, pouco acolhedor, quando o celular chegou, ele não criou a ferida, virou espelho e curativo instantâneo; e como todo curativo mal colocado, esconde a ferida sem cicatrizar.
A adolescência, que já era um campo minado de descobertas, dúvidas e inseguranças, tornou-se um território de exposição contínua, segundo a neurociência, o cérebro adolescente ainda está em construção, o córtex pré-frontal, responsável pelo autocontrole, empatia e avaliação de risco, só amadurece por volta dos 25 anos.
Enquanto isso, a parte emocional, a amígdala cerebral, opera em alta voltagem. Resultado? Emoções intensas sem freio quando um adolescente recebe cem curtidas, isso vira dopamina; quando recebe uma crítica, vira colapso; e quando não recebe nada, vira vazio. Porque por fora há filtros; por dentro, não.
E o mais cruel é como esse sujeito, frágil, chamado de “mimado”, “preguiçoso”, “sensível demais”, “improdutivo” tem os sintomas ridicularizados, não compreendidos. O que era uma dor legítima vira piada no almoço de domingo; a ansiedade vira drama, a insônia vira frescura, a dependência da tela vira falta do que fazer.
Mas ninguém pergunta: o que ele estava procurando ali? Atenção? Acolhimento? Um espaço onde pudesse existir sem precisar dar conta de tudo? O celular não inventa a carência, só a organiza em forma de aplicativo; a falta que dói aqui dentro apenas encontrou um jeito mais rápido de tentar doer menos, e ironicamente, começou a doer mais.
As redes sociais não inventam o sofrimento psíquico, apenas turbinam o que já estava no modo silencioso, adolescentes com predisposição à depressão, ansiedade ou baixa autoestima são os que mais sofrem, justamente porque entram na arena digital com menos armadura para suas emoções, que diferente do mundo real, não há tempo para hesitar, tudo é comparável, visível e julgável.

Em um estudo longitudinal publicado na Lancet Psychiatry, “Associations Between Time Spent Using Social Media and Internalizing and Externalizing Problems Among US Youth” ( https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6739732/ ), os pesquisadores Kira E. Riehm, Kenneth A. Feder, Kayla N. Tormohlen, Rosa M. Crum, Andrea S. Young, Kerry M. Green, Lauren R. Pacek, Lareina N. La Flair, Ramin Mojtabai acompanharam mais de 6.000 adolescentes entre 12 e 15 anos nos Estados Unidos e identificaram uma associação significativa entre o tempo de uso das redes sociais e o agravamento de sintomas depressivos.
O estudo aponta que jovens que passavam mais de três horas por dia conectados apresentavam quase o dobro de risco de desenvolver quadros de depressão e ansiedade, mesmo quando se controlavam fatores como histórico familiar ou traços emocionais prévios; o estudo não aponta uma simples causalidade do tipo “o uso causa depressão”, mas um entrelaçamento mais complexo entre usuário, tempo e condição emocional no uso.
O estudo “Association of Trajectories of Addictive: Type Screen Use With Mental Health and Suicidal Ideation in U.S. Adolescents” (Addictive Screen Use Trajectories and Suicidal Behaviors, Suicidal Ideation, and Mental Health in US Youths | JAMA | JAMA Network ), liderado por Yunyu Xiao, da Weill Cornell Medicine, com coautoria de uma equipe de neurociência infantil, publicado no JAMA (Journal of the American Medical Association), revelou que numa amostra com mais de 4.000 adolescentes, o tempo de uso e o modo de uso cria um padrão de comportamento que os pesquisadores chamaram de “uso problemático de mídias sociais”, que se traduz em não só estar muito tempo online, mas não conseguir se desconectar emocionalmente.
Nesse estudo, aqueles que demonstravam compulsão, angústia ao se afastar do celular e dificuldade em se autorregular eram justamente os que apresentavam maiores índices de depressão, insônia e até ideação suicida, as redes deixaram de ser lazer tornaram-se válvula de escape, e como toda fuga mal resolvida, quanto mais se corre, mais se afunda.
O ponto central desses estudos, é que o uso excessivo das redes por adolescentes não é aleatório ou inconsequente, é uma tentativa de lidar com um mal-estar anterior, uma carência afetiva, um isolamento crônico, um sentimento de não pertencimento.
O jovem não entra nas redes apenas por entretenimento, entra porque ali há uma promessa de acolhimento, um espaço onde ser visto, curtido, respondido, pode significar ainda que por segundos ser alguém, portanto o uso compulsivo não é a origem da dor, é o sintoma; e a rede, em vez de remédio, vira espelho de um mal que já estava do lado de dentro.
O cérebro adolescente é como uma estrada em construção, tem velocidade, vontade de ir longe, mas ainda não tem todas as placas de sinalização, o córtex pré-frontal, responsável por decisões conscientes, empatia e autocontrole, ainda está em obras, e as redes sociais operam com base em impulsos, são desenhadas para fisgar, prender, estimular respostas rápidas e emocionais.
O jovem não tem neurologicamente a mesma capacidade de um adulto para dizer “basta”, e o problema é que o sistema sabe disso; o algoritmo como um caçador que conhece bem sua presa, oferece mais do que o jovem consegue resistir. Cada clique é um convite à repetição; cada deslize do dedo é uma escavação a mais no solo da subjetividade.
Muitos adolescentes relatam tristeza, ansiedade, uma sensação constante de inadequação, não sabem exatamente de onde vem, sentem um vazio que a tela parece prometer preencher, mas só aprofunda. É como beber água do mar achando que vai matar a sede, as imagens perfeitas, os corpos editados, as vidas filtradas, os sucessos contínuos dos outros vão, aos poucos, construindo uma lente distorcida da realidade, uma em que o sujeito comum nunca é suficiente.
O jovem não tem repertório para desconfiar da mentira estética das redes, por isso, se cobra com a crueldade de quem acredita que todo mundo, menos ele, está dando conta da vida. Nesse descompasso entre desenvolvimento emocional e hiperexposição tecnológica, a rede cava fundo porque sabe que quanto mais instável o sujeito, mais ele retorna, e quanto mais retorna, mais previsível se torna.

É um ciclo que não precisa de maldade para ser cruel, só precisa funcionar, e funciona muito bem. Como disse a pesquisadora Jean Twenge, em seus estudos sobre a “geração iGen”, o tempo de tela não é apenas lazer, é destino emocional. Estamos formando uma geração que sofre em silêncio digital, buscando sentido em reações e emojis, quando o que precisavam era de tempo, escuta e espaço para sentir sem ser vigiados. Mas quem hoje tem coragem de desconectar para se escutar?
A sede é legítima e profundamente humana, buscamos afeto como se fosse abrigo, e pertencimento como quem procura ar em lugar fechado, o problema é quando essas necessidades ancestrais se encontram com o design sedutor e inóspito das redes sociais.
Ali, tudo parece fácil, um clique, uma reação, uma notificação, o gesto de ser visto se transforma em número; o de ser aceito, em estatística, por alguns segundos, um emoji de aplauso ou um comentário afetuoso parecem saciar a falta, mas logo somem como vapor, o alívio é tão imediato quanto instável.
E o sujeito, que queria um gole de reconhecimento, se vê preso num ciclo de sede constante, a cada curtida, o corpo emocional recebe um pequeno impulso de dopamina, mas não o suficiente para durar; é como se o afeto fosse administrado em microdoses com validade curtíssima.
Zuboff, ao nomear esse circuito de “mercado da experiência humana”, aponta que a própria subjetividade vira recurso explorável, o que antes era vínculo virou engajamento; o que era afeto, virou métrica, o sujeito, sem perceber se transforma em vendedor da própria presença, oferecendo imagens de si em troca de aprovação digital.
Só que essas imagens são versões editadas, filtradas, otimizadas para caber nas expectativas do outro, o que se consome é a ilusão de conexão, e quanto mais se consome, mais distante se fica da possibilidade de vínculo real. Porque, diferente do afeto verdadeiro que exige tempo, escuta, reciprocidade, a rede entrega relações instantâneas, programáveis e sem profundidade.
Esse simulacro de pertencimento funciona como uma encenação afetiva, onde o laço parece existir, mas nunca se concretiza; é o abraço que não esquenta, o olhar que não encontra retorno, a solidão, que antes era difusa e silenciosa, torna-se agora monitorável, pois sabe-se exatamente quantas pessoas viram sua história, quantas reagiram ao seu desabafo, quantas ignoraram seu grito velado em forma de postagem.
Tudo vira dado, vira performance, o mais preocupante é que essa solidão digital não se dá por falta de companhia, mas por excesso de presença simulada. Estamos cercados de sinais de vida, mas isolados de experiências vivas, a rede, com sua estética de comunidade, entrega só o suficiente para que ninguém perceba que continua sozinho, agora sob os olhos frios de um algoritmo que antecipa nossas carências, mas jamais cura.
Um terreno emocional já vulnerável, muitas vezes erodido por anos de negligência afetiva, ausência de escuta e escassez de espaços seguros de elaboração psíquica, a rede se encaixa como uma luva onde faltava cuidado. E como tudo que dá prazer imediato, mesmo que superficial, ela se torna sedutora e diferente dos vínculos reais, que exigem tempo e implicam riscos, as redes entregam afeto plastificado, sob medida, sob controle.
O sujeito, carente e mal estruturado, acaba confundindo esse alívio momentâneo com presença genuína e quanto mais se apoia nisso, mais dependente se torna. No começo, a entrega é generosa, a máquina oferece atenção, novidade, reconhecimento, o sujeito sente que finalmente achou seu lugar no mundo.

Paulo Zerbato
Mas logo, essa entrega vira necessidade, e quando se intensifica, o controle muda de mãos; a rede começa a ditar o ritmo, notifica quando quer, exibe o que convém, esconde o que desagrada. E o sujeito já fragilizado, aceita; troca sono por feed, conversa por notificação, tempo real por tempo de tela.
Já não é mais ele quem decide o que ver, mas aquilo que o sistema julga mais eficiente para sua permanência ali, a máquina não precisa amar, só precisa prever. E quem depende de afeto, aceita até a versão sintética de si, desde que venha com rapidez.
No fim das contas, o vício não é só pela rede, mas pelo que ela promete resolver sem nunca resolver de fato: o medo de estar só; que antes era um incômodo existencial, tornou-se um pânico social. Hoje, estar desconectado é quase uma infração emocional, quem não responde, some; quem some, não existe, e quem não existe, apaga. Por isso, seguimos grudados às telas como quem segura uma boia em mar aberto, o Wi-Fi virou cordão umbilical de uma geração que não aprendeu a ficar sozinha, porque nunca lhe foi ensinado que o silêncio também pode ser casa e não castigo.
Talvez não seja possível, muito menos desejável, evitar as redes sociais, elas estão aí fincadas na nossa forma de existir, de trabalhar, de amar, de lembrar aniversários que de outro modo esqueceríamos. A saída não esteja em fugir da tela, e sim em olhar para ela com menos fome e mais consciência, o problema nunca foi o espelho, mas o que deixamos de construir por dentro antes de nos olharmos nele.
Transformar o uso em escolha é recobrar a soberania sobre o próprio tempo, exige força de vontade e intimidade com o que nos move, escolher estar nas redes e não apenas reagir a elas é um gesto sutil de liberdade cotidiana, um pequeno ato de resistência no meio do fluxo interminável.
Quando a presença vira pausa, deixamos de estar no mundo apenas como avatares performáticos e voltamos a habitar o instante como corpo inteiro que sente, respira, se entedia, contempla; com isso, o like é reduzido à sua mínima essência natural, é destronado de termômetro afetivo e volta a ser o que sempre foi, um clique, e não um aplauso existencial.
Anda sobre redes sociais, leia também de Josué G. Vieira:
- Afinal, quem nunca errou que dê o primeiro like.
- Pontes, não muros: quando o amanhã não for consenso, seja ao menos conversa.
O silêncio reaparece como território fértil, espaço onde o pensamento pode se esticar, onde a memória pode andar descalça, e as emoções pararem de gritar para serem ouvidas, nesse espaço o sujeito, ainda dentro do mundo digital, pode começar a se reequilibrar. Não há necessidade de exílio das redes, mas de reencantamento por dentro, quando o feed acaba sobra tempo para um café consigo mesmo, sem notificações, sem audiência, só a presença inteira de quem não precisa postar para existir.
Redefinir o algoritmo com critérios humanos internos, usar a rede sem ser usado por ela, e isso seja uma boa notícia, porque quando o sujeito começa a se reconhecer fora dos números, ele volta a ser gente que sente, que compartilha porque viveu, e não para parecer vivo, que continua online, mas com o coração logado em si.

A verdade incômoda é que o vício nas redes não nasce do excesso de estímulo, mas do vazio anterior que pede preenchimento, a engenharia fria da máquina apenas reconhece os padrões, detecta carência, oferece presença; quando percebe insegurança, oferece validação. Não porque compreende você, mas porque aprendeu que sujeitos desorganizados emocionalmente são mais clicáveis, mais rastreáveis, mais lucrativos.
E como toda relação desigual, o poder não está no carinho que se recebe, mas na dependência que se constrói, a rede dá porque sabe que você vai voltar; quanto mais você volta, mais ela aprende a te manter num relacionamento onde um lado se adapta constantemente ao seu desejo.
Esse tipo de vínculo não exige força, sim necessidade, e quando o afeto vira um recurso escasso, qualquer migalha parece banquete, a pessoa que não aprendeu a estar sozinha torna-se vulnerável a qualquer sistema que prometa companhia. A ausência de sinal, por sua vez, é vivida como exclusão social, como abandono, por isso, a rede não precisa sequestrar ninguém à força, basta sugerir que a solidão é um fracasso e que o silêncio é sinal de que algo está errado; assim: sem algemas, o sujeito segue preso, não ao aparelho, mas à própria urgência de não desaparecer.
E, a saída, você sabe. Mas, e daí?!

❒ Josué Vieira, santareno, é professor, escritor, poeta e pesquisador sobre Sociedade, Cultura e Amazônia. Mora em Manaus (AM). Leia também dele: Katy, um reino além da consciência. E ainda: Desesperos, morte e silêncio na Colônia Vertical dos Perdidos.
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