Cientistas descobrem novo estado mental do sono que aumenta a criatividade. Por Walace Leal

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Cientistas descobrem novo estado mental do sono que aumenta criatividade. Por Walace Leal

Cientistas franceses da Universidade de Sorbone e do serviço de Patologia do Hospital Pitié-Salpêtrière, em Paris, publicaram um artigo científico 1 no último dia 08 de dezembro, no periódico científico Science Advances, relatando um novo estado mental, semi-lúcido, antes do sono profundo com movimentos rápidos oculares (do inglês, rapid eye movent –REM), conhecido primeiro estágio sono não-REM (N1), após o qual a capacidade criativa de indivíduos é claramente aumentada.

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O estudo foi liderado pelas pesquisadoras Célia Lacaux e Delphine Oudiette e já é considerado umas descobertas mais importantes de todos os tempos sobre a cognição cerebral e especificamente nos estudos sobre um dos mais incríveis produtos da mente: a criatividade.

É um mistério porque dormimos, mas quase todas as espécies conhecidas o fazem. Existem animais, como algumas espécies de golfinhos e aves, que têm um jeito peculiar de dormir. Essas espécies dormem apenas com a metade do cérebro, sendo que a outra fica em vigília. Os golfinhos dormem apenas com a metade do cérebro para que não se afoguem.

O tempo de sono também é muito diferente entre as espécies. Alguns morcegos dormem até 20 horas por dia. Na espécie humana, o tempo de sono pode variar entre os indivíduos, o que depende do estado fisiológico e idade. Bebês podem dormir até 18 horas por dia; adolescentes mais de 10 horas diárias, enquanto alguns indivíduos dormem apenas 4 horas durante a noite e sentem bem ao amanhecer. Há uma tendência que o tempo de sono diminua em idosos.

Uma das questões fundamentais sobre a fisiologia do sono é o porquê da necessidade de se dormir, ou seja, para que serve o sono?

Estudos recentes sugerem que além de servir para repor apenas a energia gasta durante o dia, o que está enraizado no senso comum, o sono possui funções ainda mais complexas. Sabe-se que a consolidação de memória do que aprendemos durante o dia ocorre bastante durante o sono 2.

Um estudo recente acompanhou com eletroencefalograma e ressonância magnética funcional de dois indivíduos que disputavam uma partida de videogame. O indivíduo que vencia os jogos sentia prazer e as regiões cerebrais ativadas eram monitoradas, o que revelou ativação neural em regiões específicas do cérebro, incluindo os chamados centros de recompensa e o hipocampo, uma região cerebral muito importante para alguns tipos de memória, incluindo memória espacial, de episódios e de eventos. Quando os indivíduos dormiam, seus cérebros continuavam sendo monitorados, o que revelou uma grande atividade nas áreas cerebrais de recompensa da pessoa que vencia os jogos, mesmo quando dormia, indicando consolidação das memórias positivas durante o sono 3.

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Além disso, vários estudos mostraram que a privação de sono forçada em animais de experimentação, ou a insônia em humanos, possue efeitos adversos sobre a fisiologia cerebral e a do corpo de forma geral 4.

Ratos que são privados alguns dias de sono não sobrevivem. Com privação em tempos menores, os animais apresentavam pontuação menor em testes de memória em aprendizagem. Humanos com privação crônica de sono apresentam mais problemas respiratórios, maior risco de ataque cardíaco e acidente vascular cerebral (AVC) do que indivíduos dormindo cerca de 8 horas por dia. Aliás, 8 horas por dia parece ser um número mágico, ou seja, a quantidade ideal e horas que o indivíduo deve dormir, apesar que isso pode variar de pessoa para pessoa. Existem pessoas que se sentem muito bem dormindo 6 horas por noite.

O estudo de Celia Lacaux e colaboradores 1 propiciou um novo patamar à função do sono, descrevendo um novo estado mental, semi-lúcido, antes do sono profundo REM, onde indivíduos, após despertarem, apresentam um nível maior de insights e criatividade comparados aos indivíduos que permaneceram acordados ou que dormiram profundamente.

Os pesquisadores investigaram 103 pessoas que foram induzidas a entrar em N1, estado de sono não REM (sono leve), comparados a indivíduos que dormiam profundamente ou que ficavam acordados. As pessoas entravam no estado N1 sentadas em um poltrona e seguravam um objeto na mão. Após cerca de 10 minutos, quando  as pessoas entravam em estágio N1 do sono e cochilavam, o objeto caia da mão da pessoa e ela acordava. As pessoas eram monitoradas por vídeo eletroencefalografia, um tipo especial de eletroencefalograma que permite o registro do padrão das ondas cerebrais durante o sono (polisonografia).

O procedimento de acordar após a queda de um objeto das mãos é conhecido como método de Thomas Edson, o genial inventor americano que criou a lâmpada elétrica, iluminando o mundo. Relatos históricos mostram que Edson segurava esferas nas mãos durante uma soneca. Quando as esferas caiam ele acordava após um cochilo e dizia ter seus insights mais criativos, seu momento eureca.

O aumento da criatividade após o despertar do sono não é algo novo. Conta-se que a fórmula do anel benzênico foi inferida pelo químico alemão Friedrich August Kekulé Von Stradonitz (1829-1896), após sonhar com uma cobra que engolia a própria cauda. O gênio do surrealismo, Salvador Dalí, também relatava aumento da criatividade após uma soneca.

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No estudo de Lacaux e colaboradores, os indivíduos realizavam uma tarefa matemática com uma regra oculta. A tarefa consistia em achar o número correto que deveria aparecer em uma sequência de oito números. Cada pessoa realizada 30 tentativas. Os resultados mostraram que as pessoas que acordavam após o estágio N1 tinham um desempenho superior na resolução da tarefa matemática da regra oculta, quando comparadas às pessoas que não tinham cochilado ou que tinham acordado após um sono profundo com REM.

Por exemplo, 83% das pessoas que entravam em N1 resolviam adequadamente a tarefa matemática, comparadas a 30% das pessoas que ficavam acordadas e a 14% das pessoas que faziam os testes após um sono profundo com REM. Os autores também relataram que durante N1 havia um padrão característico de ondas cerebrais com frequência entre 3.2 a 4 Hz, o chamado poder Delta, o que é diferente do padrão eletroencefalográfico do sono profundo e da vigília.

O estudo dos pesquisadores franceses é revolucionário e propõe uma forma pela qual a criatividade humana pode ser aumentada após um estágio semi-lúcido, um tipo de sono leve chamado N1. Esse estudo confirma investigações anteriores que mostraram que pacientes com narcolepsia, um estado no qual o indivíduo possui sono excessivo, dormindo repentinamente após estar em vigília, possuem um aumento de pensamento criativo e melhor desempenho em testes específicos 5.

Estudos futuros devem investigar os mecanismos desse aumento da criatividade e se o estado N1 contribui para aumento de desempenho em outros tipos de testes. O estudo mostra a complexidade das funções cognitivas humanas e enfatiza a importância do sono, propondo um novo estado de consciência onde a criatividade humana pode ser aumentada.

Referências

  1. Lacaux C, Andrillon T, Bastoul C, Idir Y, Fonteix-Galet A, Arnulf I, Oudiette D Sleep onset is a creative sweet spot.. Sci Adv. 2021 Dec 10;7(50):eabj5866. doi: 10.1126/sciadv.abj5866. Epub 2021 Dec 8.
  2. How do Whales and Dolphins Sleep Without Drowning? Scientific American. https://www.scientificamerican.com/article/how-do-whales-and-dolphin/
  3. Memory Reactivation During Sleep Improves Execution of a Challenging Motor Skill” by Larry Y. Cheng, Tiffanie Che, Goran Tomic, Marc W. Slutzky and Ken A. Paller, 18 October 2021, JNeurosci.
  4. How Sleep Loss Sabotages New Memory Storage in the Hippocampus. ht
  5. Lacaux C, Izabelle C, Santantonio G, De Villèle L, Frain J, Lubart T, Pizza F, Plazzi G, Arnulf I, Oudiette D.  Increased creative thinking in narcolepsy. Brain. 2019 Jul 1;142(7):1988-1999.
<strong>Walace Gomes Leal</strong>
Walace Gomes Leal

Neurocientista, professor Associado do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). E ainda professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde e da Rede Bionorte (Ufopa), Neurociências, Farmacologia, Bioquímica, Oncologia e Ciências Médicas (UFPA). Escreve regularmente no BJ.


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