A relação com o nobre amigo começou lá por 1975, quando depois de um longo período, voltei pela primeira vez à Terrinha.
Já a minha frequência ao Asilo São Vicente de Paulo é anterior. Começou por volta de 1964, quando estudava no Colégio Dom Amando (CDA).

Levados e orientados por um Irmão de Santa Cruz, ordem religiosa que brilhantemente tocava o CDA, regularmente comparecíamos ao Asilo onde oferecíamos o vigor da nossa juventude para o que preciso fosse.
E sempre era preciso!
— ARTIGOS RELACIONADOS
Ora reforçando pregos ou envernizando o madeirame de uma cama, ora tapando uma goteira, ora substituindo uma telha, ora capinando e limpando o pátio, ora oferecendo ombro em apoio a uma caminhada, ora distribuindo sorrisos, tudo finalizado num festivo lanche.
Na época de Natal era sagrado!
Lá estávamos nós a fazer uma barulhenta festa embalada, na maioria das vezes, por uma vitrolinha à pilha que se esforçava para se fazer ouvir.
Mas quem se importava com a vitrolinha no meio do alegre vozerio?
Mesmo assim, a quase inaudível música não impedia que vez por outra “pintasse” uns passos de bolero ritmados no romantismo de Carlos Alberto, Cauby Peixoto, ou outro boêmio.
Como fecho de ouro, recheados de abraços de Feliz Natal, visitantes e moradores uniam-se num coro com as eternas músicas natalinas.
Ah! Quanta saudade!
O terreno do Asilo se estendia até à Silvino Pinto e nos fundos ficava uma casa de abrigo a portadores de hanseníase, aos quais também levávamos apoio, alegria e muita gargalhada.Trocando em miúdos, amor, muito amor. Braços, abraços, sorrisos, palavras, olhares em forma de amor, coisa tão escassa nos dias de hoje.
Numa época em que hanseníase era condenação à morte e os portadores eram descartados em precários botes empurrados rio abaixo para o destino que a forte correnteza do Amazonas lhes ditasse, para aqueles irmãos, a nossa disposição e alegria era um pouco do paraíso na terra.
No vasto terreno as mangueiras eram abundantes e dali vinham agradáveis trinados de bentevis, periquitos, pipiras e outros conviventes do reino de Deus.
Depois que saímos do Dom Amando a semente plantada pelos Irmãos de Santa Cruz vingou em mim e em inúmeros colegas e continuamos ligados ao Asilo.
Em busca do sonho de fazer uma faculdade, inexistente na Santarém de então, em 1970 viajei para Porto Alegre e no ano seguinte vim para o Rio de Janeiro tentar a sorte, mas a distância não foi razão para me desligar da minha Santa, Santa, Santarém e nem dos cuidados ao Asilo.
Pelo fato de ter saído muito cedo de casa e perdido o convívio com familiares e amigos, posso falar de cadeira que voz, abraço, sorriso, cheirinho cheirado, isso não tem preço!
Sempre que volto à “Minha Terra tão Querida”, a visita ao Asilo é sagrada e neste 2018 não foi diferente.
No meio da tarde, sob o sol escaldante que nas palavras do meu amigo Adhemar Amaral, em seu belíssimo livro “Sementes do Sol”, “sobe pelas pernas”, a pé seria quase suicídio. Pintou então uma carona oferecida por minha sobrinha.
Nesta altura do campeonato é necessário dizer que em Santarém dispo-me de todo cuidado normal de quem vive em cidade grande, e desligado “viajo” pelos lugares que um dia foram minhas “trilhas”.
De repente o sinal do cruzamento da Presidente Vargas com Barão do Rio Branco me fez desembarcar dessa “viagem”. Meu quase septuagenário coração dispara num descontrolado tum tum tum.
Eis ali, o meu velho e conhecido Asilo!
Num pulo estou frente àquele portão, para mim tão familiar, levando minha irmã como companhia.
Íntimo que sou, meto a mão, vou entrando, e logo pinta em meu rosto um largo sorriso.
Deitado em sua maca adaptada, braços estendidos e cara de felicidade, ali estava o meu amigo Luis. Que bom revê-lo!
Um longo abraço e o natural e protocolar: “Tudo bem”?
Azulino como eu desde a nascença, dei-lhe uma camisa da torcida do Leão Azul que estrategicamente tinha levado. Imediatamente com ajuda da assistente social Virgínia, ele veste o manto sagrado o que lhe caiu muito bem.
O lanche da tarde no ventilado espaço que separa as duas alas do Asilo ia começar e a “turma” estava indócil à espera.
Já sabia que uma amiga de infância estava morando no Asilo e enquanto a esperávamos, aproveitamos para cumprimentar os demais.
Engatei um papo com um belterrense, torcedor do Leão Azul que me reconheceu dos tempos de jogador. Quando moleque, à falta de dinheiro, contou-me ter sido colocado por mim para dentro do Estádio Elinaldo Barbosa. Uma gargalhada selou minha cobrança para o pagamento desse ingresso.
Amigos comuns do saudoso Carne Seca, rimos quando lhe disse que éramos peças de museu, cidadãos do século passado, muito antes dos tempos de Colosso do Tapajós. Temos em que o saudoso Carne Seca nos enchia os olhos com jogadas magistrais no velho Elinaldo Barbosa.
A sessão futebol foi encerrada pela chegada da amiga de infância.
Depois de abraços e beijos, acomodamo-nos em um cantinho para um longo bate papo. Ela falou do quanto se sente bem naquele ambiente e que foi a mão de DEUS que a fez buscar abrigo ali, pois já não conseguia tocar sua vida sozinha. E a mudança lhe fez muito bem. Remoçou uns dez anos!
Caminhei por aquele pátio que continua bem tratado. Uma mangueira resiste bravamente e dará frutos em abundância, mas o terreno foi significativamente diminuído para dar lugar à uma clínica médica.
Voltei, sentei, estiquei o corpo e a vista e pensei na grandeza do Asilo. Olhei para um lado, olhei para o outro e faltam palavras para descrever o que vi.
Em silêncio me perguntei: Afinal, de onde vem tanto amor? Amor que vi e hoje continuo vendo?
Vi reunidos o Padre Alaelson, Presidente das Obras Sociais, Liege, Virgínia, Cristina Caetano e Deize, entusiasmadíssimos, preparando o Festival Cultural “Meu Velho Amigo” – Asilo São Vicente de Paulo, que aconteceria dia 14 de dezembro.
Vi cuidadores limpando os lugares como se estivessem cuidando de um palácio real; vi cuidadores nos quartos alimentando hóspedes que não podiam se deslocar até o refeitório. Não só alimentavam fisicamente. Alimentavam com sorrisos, com conversas, ofereciam o ombro e os braços como apoio para uma confortável posição do idoso na cama. Uma entrega total e desinteressada.
Vi cozinheiros vibrantes, satisfeitos, distribuindo sorrisos, na certeza de que ali estavam cozinhando para a nossa origem, a raiz do que somos hoje.
Vi jovens cuidadores conversando com os idosos, preocupados em lhes proporcionar conforto, preocupação que vinha sempre acompanhada de uma palavra amiga, de um aperto de mão, de um abraço.
Em cada um dessa equipe abençoada um manancial inesgotável de carinho.
De onde vem tanta dedicação, tanto carinho, tanto amor?
Pensando no mundo que temos hoje, um mundo que se relaciona por celular, que prefere “kkkkkk” ao invés de abraços, que curte “likes”ao invés de cheirinho cheirado, um mundo onde as pessoas estão ficando corcundas por tanto que se afeiçoam ao mágico quadradinho “silícico” que confere “status” (?) aos rasos de coração, o que se vê no Asilo é algo que nos dá esperança que o mundo ainda tem salvação.
Uma tarde no Asilo vale a pena. Ali o amor está no ar e se existe um pouquinho de céu na terra, o Asilo continua fazendo parte desse pouquinho.
É mais do que uma visita, é uma reciclagem na alma, um banho de santidade, lugar de plantar e colher muito mais do que plantamos.
Interagindo com os moradores e observando a dedicação dos cuidadores, dos cozinheiros, dos voluntários, dos dirigentes, compreendemos a verdadeira dimensão do Divino e nos descobrimos irmãos, filhos de um mesmo Pai, feitos à Sua imagem e como Sua semelhança.
Nos sábados santarenos sempre bato ponto no Bar do Dadá, lugar de maior concentração de ex-boleiros por metro quadrado. Lá, no sábado pós Asilo, repeti meu mantra pedindo que visitassem nossos queridos velhos. Eles são um poço de sabedoria, uma riqueza ímpar que não pode ser relegada ao descartável.
Apesar da maravilhosa equipe ali existente, calor humano é dessas coisas que nunca é demais.
Então, leitor, o que acha de uma visitinha ao Asilo?
Se puder levar mantimento, pode levar, nunca é demais. O Asilo também se sustenta com doações.
Mas por favor, leve mais do que feijão e arroz. Feijão e arroz alimentam o corpo e somos feitos de corpo e de alma. Leve também alimento para a alma! Leve palavras, leve abraços, leve beijos, leve cheirinhos.
Saia do seu quadrado e vá se realizar como mensageiro de Deus junto aos irmãos que já não têm o mesmo vigor físico. Você, como eu, poderemos um dia estar lá.
Neste ano de 2019 certamente vou à minha Santa, Santa, Santarém. Quem sabe nos encontraremos no Asilo? Vai ser uma festa! Quanto mais gente, melhor!
— * É advogado e economista. Santareno, reside no Rio de Janeiro, de onde escreve regularmente para este blog.
Leia também de Helvecio Santos:
Mirante Fortaleza dos Tapajós
Querido amigo de farda do exército, turma de 1968. Queria saber escrever o que penso de você. São coisas boas. Desde que nós nos reencontramos, depois de 50 anos, fiquei ainda fã de suas atitudes. Te conheci melhor agora, pois, tivemos oportunidade de conversar pessoalmente e se comunicar através das redes sociais. Sabe o que você é? Um grande ser humano. Seu texto me emocionou. Que Deus lhe conceda vida longa, para que continues sendo uma ponte para os que não acreditam no amor. Receba meu abraço de carinho, respeito e muita admiração.
Sua rica experiência de vida, aqui compartilhada, sem dúvida terá um efeito multiplicador em nossas consciências. Feliz de quem pode viver momentos como esses de entrega e de amor ao próximo ! São as memórias boas que nos impulsionam e aquecem o coração nos dando a certeza de que tudo valeu a pena. Obrigada por dividir conosco sua emoção. Você nós deu algo precioso para refletir!
Helvecio, sua experiência de vida, aqui retratada, sem dúvida terá um efeito multiplicador em nossas consciências. Feliz de quem pode compartilhar momentos especiais como esses, de entrega e de amor ao próximo! São as memórias boas que nos impulsionam e aquecem o coração com a certeza de que tudo valeu a pena. Obrigada por dividir sua emoção conosco… Você nos deu algo precioso para refletir!
Muito bom o texto do azulino, mantendo sempre a qualidade e diversidades de suas matérias!
Ainda hoje imprimi a matéria que o Helvécio fez anteriormente quando aproveitou o aniversário do Pantera do Norte e homenageou o Inaçinho, a qual entreguei a cópia e gostou muito!
Grande Chocron, grande amigo: Gente da melhor qualidade!
Ocasionalmente vou ao Rio de Janeiro (RJ) visitar minha mãe que reside nessa cidade.Me orgulharia muito de poder apertar a mão desse santareno autêntico, e de tamanha dignidade.
Em tempos passados já estive nesse asilo levando nossa contribuição em frutas oriundas da produção de um sítio de nossa propriedade no planalto santareno.Com esse chamamento afetuoso me comprometo a sempre que retornar a Santarém fazer desse apelo uma obrigação familiar.Mais santarenos desse calibre e certamente o presente e o futuro dessa região seriam muito mais promissores.
Cirúrgico, Chocrón! Que essa iniciativa contamine a sociedade feito um rastro de pólvora.