Liberdade de expressão, pós-verdade e democracia. Por Válber Pires

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Liberdade de expressão, pós-verdade e democracia. Por Válber Pires
“Ameaças à liberdade de consciência colocam em risco a democracia”. Foto: Reprodução

A ameaça que as fake news já demonstraram representar à democracia impõe a urgência de se debater profundamente o tema da liberdade de expressão e da verdade nas sociedades modernas. Tentarei demonstrar que liberdade, verdade e democracia se complementam e se preservam. Aviso que este artigo exige um pouco de fôlego.

PREÂMBULO

É comum encontrar vídeos virais na internet de algum youtuber, influencer, podcaster ou político que defendem a liberdade de expressão como um direito individual inviolável. Até aí, tudo certo!

O problema é quando buscam, neste direito, um argumento para legitimar a disseminação de opiniões falsas, mentiras ou fake news que concebem como verdade. Pior, resistem a qualquer tipo de contestação ao conteúdo que divulgam por questionar o conceito de verdade, argumentando que esta é relativa.

LIBERDADE E HUMANIDADE

A liberdade possui várias dimensões no pensamento moderno: uma dimensão ontológica, que é fundamento da própria humanidade; uma dimensão epistemológica, que é fundamento da verdade; uma dimensão política, que é fundamento da democracia; uma dimensão econômica, que é fundamento do capitalismo; e uma dimensão social, que é o fundamento do contrato ou da ordem social.

É em Thomas Hobbes e John Locke que se encontram os fundamentos da liberdade enquanto condição de humanização do homem: para Hobbes, em busca de segurança, os homens abdicam do estado de natureza para viver sob as leis da vontade livre, isto é, leis políticas. São estas leis que nos humanizam, porque nos impedem de agir como animais selvagens em luta uns contra os outros.

Locke, por sua vez, vê na própria vida a emergência da liberdade que nos humaniza: a vida é a libertação da matéria inanimada; a consciência, a libertação da matéria bruta; o trabalho, a aplicação da consciência livre sobre a natureza para adaptá-la às necessidades humanas. Logo, o homem é a síntese de múltiplas liberdades.

Enquanto condição humana e, assim, de desenvolvimento da humanidade, a liberdade só pode ser defendida e se desenvolver dentro de um ambiente institucional, isto é, social, que a coloque como princípio, meio e fim da vida humana.

LIBERDADE E VERDADE

Nesta direção, a liberdade enquanto fundamento ontológico da humanidade também se reverte em fundamento epistemológico, da verdade. Para os grandes pensadores da modernidade, a liberdade enquanto verdade é manifestação da razão.

A razão, por sua vez, de um lado, refere-se ao conhecimento científico, filosófico, histórico e estético, e, de outro, ao conhecimento lógico: síntese entre espírito e matéria, cadeias de ideias de acordo com o encadeamento de fatos, fenômenos e processos históricos e empíricos observados.

Sem lógica não existe verdade, mas retórica, a qual busca manipular, obscurecer o espírito humano, ao contrário da verdade que o liberta.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO AMPLA E RESTRITA

Quando se fala, modernamente, desde Jonh Locke, passando pelo próprio radicalismo de Voltaire, em liberdade de expressão esta pode ser entendida, em sentido amplo e restrito: em sentido amplo, o direito de todos emitirem uma opinião qualquer sobre qualquer assunto.

Contudo, em termos restritos, a liberdade de expressão é a expressão da liberdade, logo, não mais mera opinião e sim argumentos solidamente fundamentados pela razão: história, ciência, filosofia, lógica.

Deste modo, se a liberdade de expressão pode ser admitida como fundamento de socialização dos sujeitos na vida cotidiana, o mesmo não se aplica ao mundo institucional, onde estão cristalizadas as regras da vida social que garantem a integração e a coesão na sociedade, e sem as quais voltamos ao estado de natureza hobbesiano.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INSTITUIÇÕES SOCIAIS

Neste universo institucional, onde se encontram o Estado e seus aparelhos (Ministérios, Secretarias, Diretorias, Parlamentos etc.), empresas, escolas, universidades, organizações da sociedade civil, aparelhos de mídia e de imprensa, a liberdade de expressão tem de ser, obrigatoriamente, a expressão da liberdade, isto é, da razão.

É por isso que o sociólogo Max Weber enxerga a racionalização como aquilo que há de mais singular no Capitalismo, no seu Estado Racional Legal e enxerga este processo como fundamental para o aprimoramento das instituições sociais.

Imaginem uma empresa, uma secretaria, um ministério, uma ONG, um sindicato, uma universidade, uma escola, uma prefeitura, um jornal sendo administrados com base em informações incorretas, em mentiras e fake news?

Vejam o caso recente das Lojas Americanas, vítima de fake news contábil para entender o quanto a mentira é deletéria para a sobrevivência e o desenvolvimento institucional.

MENTIRAS REPETIDAS SE TORNAM PÓS-VERDADE

E neste cenário que se encontra o principal problema dos youtubers, influencers, podcasters e políticos que defendem fake news: quando muito, possuem apenas um discurso retórico pobre sobre liberdade e verdade, sem lastro histórico, científico, filosófico, estético, lógico.

Por isso, esses são apologetas do que se convencionou denominar de pós-verdade: vítima de um discurso relativista mal elaborado e mal compreendido, creem que qualquer opinião fantasiosa seja verdadeira, que a verdade é fruto de mera convicção pessoal em tornar sua crença verdadeira.

Desconhecem a universalidade exigida por um silogismo baseado em premissas corretamente articuladas para se pensar corretamente.

Esta fórmula da pós-verdade, como é de amplo conhecimento, foi sintetizada pelo ministro da propaganda de Hitler, o Joseph Goebbels: “uma mentira dita cem vezes se torna uma verdade”. No fundo, é isso que defendem tais apologetas.

PÓS-VERDADE E FUTURO DA DEMOCRACIA

A existência de uma imprensa livre e do direito à liberdade de expressão enquanto expressão da liberdade é fundamental para o aprimoramento das instituições sociais.

A liberdade de expressão deveria conduzir as pessoas ao desenvolvimento de um pensamento livre, que lhes qualificaria a agir de modo racional no ambiente institucional, tomar decisões corretas, baseadas em informações e conhecimentos lógicos, científicos, históricos, metódicos.

O único regime político que coloca a liberdade, em todas as suas dimensões, como fundamento de sua existência é a democracia. Assim, ameaças à liberdade de consciência colocam em risco, também, a democracia.

No fundo, o que os apologetas das fake news desejam é isso: uma liberdade de expressão para exprimir mentiras, fake news, manipular, desumanizar, obscurecer as consciências. Por isso, são tão adeptos de todo tipo de violência simbólica: preconceitos, xenofobia, racismo, homofobia, misoginia, gordofobia desfilam livres em seus posts.

Portanto, querem suprimir a liberdade de expressão enquanto expressão da liberdade, da razão, da verdade e, assim, da humanização, do desenvolvimento humano, da democracia política, social e cultural.

<strong>Válber Pires</strong>
Válber Pires

É professor universitário, doutor em Sociologia, com pós-doutorado em Socioeconomia e Sustentabilidade. Escreve regularmente no JC.


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