A idosa e a gata. Por Jorge Guto

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A idosa e a gata. Por Jorge Guto
"A Miá, sua gata mestiça, é mimada, e tem em potencial dentro da sua existência". Foto: Reprodução

A idade que avançou para a minha mãe não é bem vinda por ela, e o ameno humor que precisa ter os velhos, é compreensível que seja deixado de lado. 

Vejo que não é fácil aceitar que o corpo não vai responder ao mínimo esforço que a mente confabula, num arteiro gesto que impulsiona um grande desejo. E vai se aceitando ficar, ir já é difícil, para qualquer lugar que não esteja adequado com as limitações. 

Minha vó Laura, filha de retirante nordestino, foi criada em um colégio de freiras, sempre teve na leitura um prazer imenso, que valia o existir, em especial a velhice. 

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Retirante, Santa Catarina.

Lembro de ver minha vó com uma lupa, com um terço dependurado no antebraço, e ali no ato de ler jazia a paz que precisava para os seus últimos dias. 

O que parecia resolvido, eis que um dia chegou a cegueira, e em seguida uma demência. Aniquilou a tão intensa leitora, que andou triste e vendo coisas, as quais se existiram, não estavam acontecendo naquele exato instante. 

Já a minha mãe, ativa em ações sociais, contou com o vigor físico para fazer acontecer na sua área profissional. Movida a se deslocar, a mobilidade ampla respondeu até o mal que o mundo chamou de pandemia. As consequências dessa levaram a fazedora do social para uma brusca redução, até a não realização com plenitude de tudo que podia fazer antes.

Essa sofre a solidão das mudanças meio que inevitáveis da vida, como o afastamento de entes queridos e uma desconsideração da sua presença física, que quase sempre é certa em várias situações. 

A Miá, sua gata mestiça, é mimada, e tem em potencial dentro da sua existência, ares de ingrata e preguiçosa, uma companhia relevante, mesmo que de posse de sentimentos felinos, Miá bem sinceramente tenha apenas uma relação de dependência do acesso à ração, seu alimento.

 O que resta para esse tipo de velhice além de filhos, que quase sempre são ingratos (assim pensam com razão todas as mães, é mesmo difícil corresponder tamanho amor materno), é o carinho um tanto “falso” da gata quando aperta a fome.

Miá é uma gata idosa também, e tem um abuso em seu comportamento, uma pachorra, um quê de indolente. As vezes não sabemos se respira, escolhe lugares inusitados para madornar, e coloca a cabeça na janela da cozinha como se estivesse arrependida ou de castigo por algo que fez, acho que em uma de suas vidas.

A gata é presença doméstica e como sempre misteriosa para a idade avançada, e não se enquadra em filha pet, jamais! É muito protagonista no ransronar de seu existir, para ser reduzida a filha ou qualquer parentesco na linha sucessória da humanidade. 

Ela faz pouco dos resmungos da velhice, com uma evidente cara de quem tem muitas vidas, e se em uma delas ocorre de envelhecer, prefere dormir e se aproveitar de uma humanidade com um único prazo de validade,  essa vida, uno e ainda eterna. 

O que fazer com tanta eternidade para uma vida só? É de dar sono, realmente, só em pensar…desiste e vai se esfregar nas pernas (também gasta pelo tempo) de uma cadeira, na cozinha cheirando a tempero que não lhe apetece.

➽➽ Jorge Augusto Morais, o Jorge Guto, é santareno, formado em direito e aprendiz da crônica reflexiva, em prosa, influenciado por uma tia, professora de literatura brasileira. Desde criança lê contos e escreve sobre dramas humanos universais, tendo como cenário uma Amazônia que pode estar na informalidade e no inusitado.


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