O Arigó Tapajoara que belisca a Lua. Por Paulo Cidmil

Publicado em por em Arte, Artigos, Santarém

O Arigó Tapajoara que belisca a Lua. Por Paulo Cidmil
Zé Azevedo, o Arigó Tapajajora, no show "As Digitais da Amazônia". Foto: Paulo Cidmil

Conheci Zedimar ainda adolescente, menino, e como eu, fissurado por música e gibis. Aquele garoto, além de muito alto e ser um típico nordestino, tinha algo que o diferenciava: arranhava um violão, escrevia versos e os cantava batendo uma ou duas notas na viola com muita determinação.

Algum tempo depois, pós-adolescência e entrando na juventude, o reencontrei no Rio de Janeiro. Sua cantoria bem mais firme e versos enigmáticos já anunciavam um trabalho autoral. Em meio a canções de modernos cantores nordestinos, Zé impressionava ainda mais quando cantava as de sua autoria.

Sua formação católica, de ex-seminarista, lhe deu uma visão de mundo cristã humanista e foi a abertura de portas para os livros, a filosofia, o cinema e as artes em geral.

Zé correu o país, foi visitar suas origens, olhar o sertão, tomar banho de açude, saber sobre sua raiz, olhar a bela Fortaleza e voltou para o seu canto, onde já morava o seu coração. Cresceu entre um verso e outro tomando banho de rio nas águas do Tapajós.

Navegou pelos caminhos difíceis dos autodidatas buscando conhecimento e sabedoria. E na música seguiu as pistas dos que admirava: Zé Ramalho, Belchior, Ednardo, Yes, Bob Dylan, Gonzaguinha, Isoca, Luiz Gonzaga,  Patativa do Assaré… assim foi se fazendo o Zé.

Chamavam-no de teimoso, mas Zé já sabia o caminho, era rock, mpb, verso, repente e viola, Nordeste, floresta e o rio Tapajós. Escrevia canções tão simples que diziam ser de difícil compreensão, proféticas, metafóricas, porque Zé nunca deixou barato, aprofundava o pensamento e produzia canções com temas humanistas e de amor à natureza.

Diziam que Zé era difícil, complicado, confuso. Zé nunca cedeu um milímetro, mantendo a altivez e a dignidade intactas. Desde menino um trabalhador, sempre tinha uma vendinha com a qual garantia seu sustendo, vendendo coco, picolé, salgados, vitaminadas, mastruz com leite. Seu amor pela natureza o fez um profundo conhecedor da terra onde chegou com 2 anos de idade.

Foi concorrendo e ganhando festivais de música em Santarém e região que Zé se tornou conhecido como autor de canções e poeta popular. O tempo dos festivais foi ficando para trás, e Zé, que nunca entrou em oba-oba e nem frequentava a lista dos maiorais, foi entrando na área sombria do esquecimento.

Sua persistência em fazer trabalhos autorais – Zé nunca se viu como intérprete, apenas um autor que interpreta suas próprias canções – ajudou a distanciá-lo dos palcos.  Foram muitos temporais, mas Zé sempre soube a diferença do olho do bacurau e da onça no escuro, nunca se deixou enganar pelo assovio do curupira.

Seguiu fazendo suas canções, escrevendo sua prosa e versos enquanto tocava a vida no batente do dia-a-dia. Para alguns poucos amigos, mostrava as novidades e esses o incentivavam a voltar aos palcos. Decidido a fazer seu último show, nos recentes 18 meses, Zé apresentou três espetáculos. “Imbiara na Amazônia”, “Retrato das Faces” e “As Digitais da Amazônia”

Não assisti à “Imbiara na Amazônia”, fui ao “Retrato das Faces” e a convite do amigo Aládio Mourão, partimos para produzir o que seria o último show do Zé.

Em “As Digitais da Amazônia”, Zé imprime sua identidade: cantoria que expressa sua raiz nordestina e texto que revela seu amor pela natureza, cultura regional e expõe os dilemas amazônicos. Para quem não sabe, bem antes da palavra ecologia entrar na pauta do dia, ainda nos anos 80, Zé já era um ativista em defesa da Amazônia através de suas canções.  

Zé no show "As Digitais da Amazônia", na Casa de Cultura de Santarém

Ninguém consegue por fim ao falso dilema que por vezes divide e opõe os migrantes nordestinos e os nativos do lugar. Nélio Aguiar deu um passo, ao exigir respeito à sua condição de nortista quando ofendido por uma xenófoba em um voo comercial.

Mas é a obra de Zé que conseguiu realizar um casamento indissolúvel entre o Sertão e o Tapajós. Esse é Zé Azevedo, o Arigó Tapajoara que belisca a Lua. Assim o chamavam quando menino começou a correr pelas ruas do bairro da Aldeia, por ser sempre o mais alto entre todos os meninos do lugar.

Assim como seus conterrâneos do Nordeste, Zé Azevedo também tinha um plano de riqueza: ficar rico de música e poesia. Custou-lhe muito caro, foi um trabalho titânico para vencer as adversidades, mas Zé conseguiu realizar o seu sonho. Construiu uma obra poético-musical, tornou-se um poeta cantador, um menestrel da floresta, uma das pérolas da rica cultura das terras e águas do Tapajós.

Eta caboco paidégua!

Paulo Cidmil
Paulo Cidmil

É diretor de produção artística e ativista cultural. Santareno, escreve regularmente no portal JC.


Publicado por:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *