
Muitas são as críticas levantadas sobre a interpretação e aplicação das normas penais, tendo como referencia o Código Penal brasileiro.
A mais comum é sobre sua dessintonia com a atual realidade da sociedade, visto que, por ser um marco legal de 1940, que impõe tipos penais a comportamentos, assim como, sua parte geral compõe os fundamentos da teoria do crime para as normas penais brasileiras, tendo como referencia um modelo social homogêneo culturalmente, sem considerar os conflitos culturais decorrentes da relação da sociedade nacional dominante e os grupos minoritários se que mantêm em convívio.
O fator cultural não é explorado, com objetividade, pelas normas penais brasileira. Todavia deve ser destacado que foi a Constituição Federal de 1988 que deu relevância as manifestações culturais, inclusive dedicando numa seção a matéria afirmando ser obrigação do Estado brasileiro apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais, e ao focar povos com fatores culturais diferentes da sociedade nacional, determinou a Carta Cidadã, que o ente estatal tem dever de ‘proteger’ e ‘garantir’ a afirmação e manutenção da diversidade, art. 215 a 216-A da Constituição.
Sem dúvidas, a Constituição de 1988 reconheceu a diversidade cultural brasileira e, ainda mais, elencou que seu processo de formação não teve origem em uma única matriz cultural, mas trata-se de uma sociedade formada, com base na multiculturalidade.
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A multiculturalidade sempre esteve presente na sociedade brasileira, entretanto, sem atenção, pois as medidas que antecederam a Constituição de 1988 objetivavam integrar os povos num único povo, chamado de povo brasileiro, só que tendo como referência o “modelo eurocêntrico” de sociedade.
Interpretar e aplicar o Direito numa sociedade multicultural não é tarefa fácil, pois é exigido disposição para se superar pré-conceito
O reconhecimento Constitucional de 1988, no âmbito do fato cultural, obrigou o Estado a manter uma nova postura, seja na implementação de politicas públicas, seja na interpretação e aplicação do Direito.
Interpretar e aplicar o Direito numa sociedade multicultural não é tarefa fácil, pois é exigido disposição para se superar pré-conceito e discriminação para aplicar as normas jurídicas considerando o universo cultural em que o “outro” (o agente com cultura diferente) pertence.
A complexidade fica maior ainda quando voltada a interpretar e aplicar o Direito em casos de crimes envolvendo agentes, com fator cultural, diferente da sociedade nacional, visto que, como já afirmado, as normas penais brasileiras, não fazem referência as questões voltadas a diversidade cultural. Mesmo assim, merece ser salientado, que quem interpreta e aplica o Direito, no caso aqui os Magistrados, são obrigados a decidir, sem violações a norma constitucional.
Entre várias questões que o tema suscita podem-se simplificar na problemática: Como garantir a proteção e afirmação da diversidade cultural, previsto na Constituição Federal, quando se trata de crime envolvendo conflito cultural do agente com a sociedade dominante, diante da lacuna das normas do sistema jurídico penal?
As doutrinas sobre o assunto são escassas, mas buscaremos enfrentar a questão e propor uma solução.

Cristina de Maglie (2017) diz que uma conduta considerada crime, no sistema penal dominante, praticada por um agente pertencente a um grupo minoritário, desde que, tolerado e aceito como normal ou aprovado pelo grupo de pertencimento, deverá ser analisado, na persecução penal, como crime cultururalmente motivado: “(…) um comportamento realizado por um sujeito pertencente a um grupo étnico minoritário, que é considerado crime pelas normas do sistema da cultura dominante. O mesmo comportamento, na cultura do grupo de pertença do agente, é, por outro lado, tolerado, aceito como normal ou aprovado, ou, em determinadas situações, é até mesmo imposto” (Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. São Paulo-SP: Revista dos Tribunais, 2017, p. 70).
Na mesma entoada, o professor Augusto Silva Dias (2018) diz que havendo conflito normativo entre o comportamento do agente de um grupo minoritário e o sistema jurídico dominante estar-se diante dos crimes culturalmente motivados: “É um fato praticado por um membro de uma minoria cultural, que é considerável punível pelo sistema jurídico dominante. Esse mesmo fato é, no entanto, dentro do grupo cultural do infrator, tolerado ou aceite como comportamento normal, aprovado ou mesmo promovido e incentivado na situação concreta” (Crimes Culturalmente Motivados: O Direito Penal ante a “estranha multiplicidade” das sociedades contemporâneas. Coimbra-Portugal. Edições Almedina, 2018, p. 16).
Como se conclui dos posicionamentos doutrinários a característica principal dos crimes culturalmente motivados é o conflito cultural envolvendo a conduta do agente pertencente a um grupo minoritário e o sistema jurídico penal dominante, em que, o sujeito infrator pratica a conduta, reproduzindo aquilo que foi lhe ensinado no contexto social de pertencimento, mas que no sistema jurídico penal dominante é reprovado e enquadrado como crime.
A solução para os crimes culturalmente motivado, nos atos decisórios dos magistrados, deve seguir alguns critérios, conforme expõe Cristina de Maglie.
Primeiramente, deve ser certificado se a conduta é enquadrada como crime no sistema jurídico penal dominante e se o agente infrator pertence ou não a algum grupo minoritário com manifestação cultural diferente da sociedade nacional. Caso positivo segue-se ao segundo critério.
No segundo critério a finalidade é identificar se o grupo minoritário reconhece o agente como pertencente ao grupo. Deve-se ainda nesse critério, fazer um estudo antropológico se os membros do grupo reproduzem a mesma conduta praticada pelo agente infrator, de forma espontânea, e se nas mesmas condições do infrator teriam a mesma postura. A finalidade aqui é demostrar de forma objetiva que a ação do agente delituoso não é isolada, mas faz parte da reprodução cultural do grupo que pertence.
Por fim, no terceiro critério deve ficar demonstrado que as práticas culturais do grupo minoritário conflitam com sistema jurídico penal dominante, pois não basta haver diferença cultural, é necessário que a conduta do agente conflite com o sistema jurídico penal do juízo da decisão.
A doutrina aqui indicada defende que na análise de crimes culturalmente motivado é necessário a perícia antropológica, visto que, é o profissional, com formação na área das ciências sociais, com expertise técnica para fazer a análise e descrição de questões culturais das sociedades.
Sendo caso de crime com motivação cultural, as normas penais serão interpretadas e aplicadas, considerando o ambiente da “culpabilidade”, uma vez que, na ‘tipicidade” e “antijuridicidade” a norma jurídica objetiva prestar o comando das condutas reprováveis.
A culpabilidade por sua vez visa impor o juízo de reprovação a essas condutas, isto é, será analisado a aplicação ou não da pena imposta ao agente infrator.
É importante destacar que o agente que pratica um crime culturalmente motivado age numa conduta prescrita pelas normas penais reprovada.
Pode-se exemplificar, usando como referencia práticas comuns na região amazônica, como: um indígena que mata ave silvestre para utilizar suas penas em rituais da comunidade ou para o artesanato; Ou membro de uma comunidade tradicional ribeirinha que pesca quelônios para sua alimentação; Ou membros de religiões afrodescendentes que sacrificam animais em rituais religiosos.
Todas as práticas são tidas como criminosas nos termos da Lei 9.605/1988. Se considerar somente a subsunção, isto é, o encaixe do fato a norma deverão ser responsabilizados e condenados a cumprir as penas impostas.
Todavia, sendo comprovado tratar-se de crimes com motivação cultural será considerado no âmbito da “culpabilidade”, em específico no elemento da possibilidade de conhecimento do agente da ilicitude do fato, que a prática delitiva movida de forma consciente pelo infrator sob a motivação cultural, a exculpante de “erro de proibição” que impede o Estado de impor o cumprimento da pena. Isto é, o agente só praticou a conduta por acredita, estar agindo em concordância com o que é permitido, pois no grupo de sua convivência, a conduta é ensinada, tolerada e aceita como normal, inclusive é incentivada aos membros para praticá-la como forma de sobrevivência.
A comprovação objetiva de haver motivação cultural do agente impede o Estado de impor a punibilidade, pois diante de um erro de proibição a conclusão é que o agente agiu com consciência da conduta praticada, mas por fazer sua leitura de mundo com referência numa outra cultura, acredita estar agindo em concordância com o que é permitido.
Enfim, como já se afirmou no início, interpretar e aplicar o Direito em sociedades multiculturais, como a sociedade brasileira, garantindo a proteção da diversidade cultural esculpido na Constituição Federal, quando se trata de um crime praticado por um agente culturalmente diferente, exige a superação da forma tradicional de se olhar o Direito para evitar com isso decisões que mantem e reproduz o preconceito e a discriminação por desconsiderar o universo cultural que determina a forma de ver o mundo desses grupos que conflitam culturalmente com a sociedade dominante, sendo a obrigação sua proteção e afirmação.
REFERÊNCIAS BÁSICAS
BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
DE MAGLIE, Cristina. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. São Paulo-SP: Revista dos Tribunais, 2017, p. 70.
DIAS, Augusto Silva Crimes. Culturalmente Motivados: O Direito Penal ante a “estranha multiplicidade” das sociedades contemporâneas. Coimbra-Portugal. Edições Almedina, 2018, p. 16.
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