
Tia Rosemary era a tia “Mere”, tia “Mêca” para a garotada de casa. Ela era especial, tinha uma fala levemente incompreensível e docemente acompanhada de atitudes cheias de amor. O feijão era “feção”, o mais saboroso, num molho de coloral, caseiro.
Sua existência na cozinha cheirando a arroz , e o café e chá da tarde, duas garrafas distintas. Preparava e ia se por na janela da sala, vista dos dois rios da cidade, logo ali o quintal da casa grande e uma meninada a brincar as brincadeiras que já eram consideradas de antigamente.
O café tá pronto – dizia para os adultos que estavam eventualmente passando, queria conversar. Tia Mere tinha um tom na fala já conhecido para cada tipo de acontecimento, e gostava de ser boas novas, quem sabe de notícias boas, a fofoca familiar que não leva ninguém para o inferno. O segredo era contado em sussurro, a surpresa um pouco mais gaguejada, a felicidade em expressões bem regionais e espaçadas, como “olha sá”, que é o nosso paraense – olha já!
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A tia tinha uma pureza e ao mesmo tempo uma esperteza nobre, focada na realidade e no convívio familiar. Reprovava certas atitudes, reclamava, era como um termômetro que não escapava o clima da casa, daquele monte de gente que convivia num mesmo espaço.
A percepção de infância era de uma tia realmente “especial”, expressão social que veio depois, e à época fazia muito sentido porque era o que era pra gente, nos sentíamos amados e amando especialmente uma pessoa presente no ambiente doméstico, e que espalhava amor como se num desodorizador, purificando com cheiros e mais! sabores, e cores das batas e vestidos que ela usava.
Era um colo quente, destino de quem nasceu naquela família. E de brinde um conversar infantil num corpo de adulto, que transmitia responsabilidade e mais genuíno sentimento de amor do que de atividade puro e simples, laboral. Não era só a sua culinária incrível, era a sua presença matreira e de essência humana, das melhores, a nos colocar nos braços quando pequenos, a nos oferecer um chá da tarde, com farinha de tapioca, um sorriso que reconheceremos na eternidade…
Um dia, uma dor que foi mal explicada, invadiu a pureza, tomou conta de uma humildade, que em silêncio, foi mau se instalando, injustamente em corpo que nosso amor não blindou em razão da existência do sofrimento que não há como evitar.
A tia especial do sorriso na janela, do sabor inigualável que tirava do pior feijão que fosse, estava tempo demais no fundo da rede, após várias consultas e exames, um diagnóstico que jamais combinou com a sua história.
Um tumor, maltratava o mais belo ser de uma família surpresa com um tal de CA, antes tão distante. Dias difíceis se seguiram, tia Mêca em leito de hospital, um último suspiro de todo o amor de uma vida inteira ecoou na minha frente. Pronto.
Era a sua hora derradeira, se impôs sob todas as condições não ideais, segundo o nosso entendimento, e se foi, deixando as folhas de capim santo mais santo, o café não mais no ponto, o “feção” pra ser feito, não suportou e azedou no gosto da partida, e um arroz que virou saudade ao som de cantigas.
Marco de despedida da primeira pessoa mais próxima da gente, a morte chegou sem cuidado em nos fazer forte, com a sua usual tática de nos forçar a aceitar a vontade de quem é Supremo, tia Mêca foi única, especial, rara especialidade de quem existiu e permanece.

➽➽ Jorge Augusto Morais, o Jorge Guto, é santareno, formado em direito e aprendiz da crônica reflexiva, em prosa, influenciado por uma tia, professora de literatura brasileira. Desde criança lê contos e escreve sobre dramas humanos universais, tendo como cenário uma Amazônia que pode estar na informalidade e no inusitado.
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