Crime e castigo

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por Célio Simões (*)

Quem viveu os famigerados “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil aprendeu a amar a Carta de República de 1988 – a chamada “Constituição Cidadã” na feliz expressão de Ulysses Guimarães – que em seu artigo 5.º trouxe um elenco de garantias invioláveis aos brasileiros, dentre as quais, a punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais (inciso XLI).

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Trouxe também, em decorrência dos tratados internacionais firmados e ratificados pelo Brasil, proibição à aplicação da pena de morte (salvo em caso de guerra declarada), de penas perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e acima de tudo, aquelas classificadas de cruéis que na idade média fazia o deleito dos carrascos, como os açoites em praça pública, a amputação das mãos em caso de roubo, a forca e a fogueira, esta conforme inspiração na sombria época da inquisição, estimulada pela Igreja Católica da Espanha.

Não se deve, portanto, deixar de reconhecer que o nosso Estatuto Fundamental, está equiparado àqueles mais avançados do mundo moderno, embora acusado de longo e detalhista demais, a ponto de proclamar, no art. 242, § 2.º, que “o Colégio Pedro II, localizado no Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”, como se esse detalhe fosse de regulamentação indispensável para nossa vida jurídica e política.

Mais do que um diploma legal de caráter normativo, nossa atual Constituição Republicada é festejada porquanto estabelece princípios, revelado-se uma lei principiológica portanto, a ser imitada pelas constituições Estaduais, sempre tendentes ao exagero, aos casuismos e às conveniências das assembléias legislativas.

Entretanto, se qualquer estudante de Direito não pode regatear aplausos a nossa atual Constituição, deverá de igual modo fazê-lo em relação à primeira, outorgada em 25 de Março de 1824 por Dom Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, detentor exclusivo do “Poder Moderador”. Nem se cogitava àquela época tão remota em direitos humanos e por influência direta de sua Majestade Imperial, a Carta do Império trouxe dois avanços, um que jamais foi cumprido até hoje e outro, só aos poucos assimilado nos remotos sertões brasileiros, onde nenhuma comunicação era possível com a Capital, o Rio de Janeiro.

A norma jamais cumprida dizia que “As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”. O caso da menina ilegalmente presa e estuprada por trinta bandidos em Abaetetuba, em tempo recente, é um eloqüente exemplo da falência do nosso caótico e falido sistema carcerário que não recupera ninguém.

A outra – que chegou com tardança de anos nos lugarejos do interior – resguardava a integridade física dos presos e condenados, ao proclamar: “Desde já ficam abolidos os açoutes, a tortura, a marca a ferro quente, e todas as penas cruéis”.

Muita gente já me confidenciou que gostaria de ver extirpada essa garantia da nossa legislação, para aplicar o merecido castigo aos repulsivos pedófilos da vida, marmanjos de colarinho branco ou de batina, todos covardes porque cometem esse abjeto crime contra a infância indefesa, reclamando exemplar punição.

E foi o que fez o juiz municipal da longínqua Vila de Porto da Folha, Estado de Sergipe, onde morava Manoel Duda, um sujeito tarado que vivia atacando a mulher dos outros, até que achou pro dele.

Preso por violência sexual contra a esposa de Xico Bento que estava grávida, com isso provocando o óbito do nascituro, recebeu ele a seguinte sentença, quase dez anos depois da abolição das penas cruéis pela Constituição Imperial de 1824. Ei-la, na linguagem aportuguesada da época:

“O Adjunto de Promotor Público representou contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’anna, quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto della, o supracitado cabra que estava de tocaia, em uma moita de matto, sahiu de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem roia a brocha, para coisa que não se pode trazer a lume, e como Ella se recusasse, o dito cabra abrafolou-se della, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará, e não conseguiu o matrimônio porque Ella gritou e veio em assucore dessa, Nocreto Correia e Clementos Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante, e pediu a condenação delle como incurso nas penas de tentativa de matrimônio forçado e a pulso de sucesso porque a dita mulher estava pejada e com o sucedido deu à luz a um menino macho que nasceu morto.

As testemunhas, duas são de vista porque chegaram no flagrante e bisparam a perversidade do cabra Manoel Duda e as demais testemunhas são testemunhas de avaluemos. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer nauvrágio do sucesso faz prova, e o juiz não precisa de testemunhas de avaluemos e assim:

CONSIDERO – que o cabra Manoel Duda, agrediu a mulher do Xico Bento, por quem roia a brocha, para conxambrar com Ella, coisas que só o marido della competia coxambrar, porque eram casados pelo regime da Santa Igreja Catholica Romana.

CONSIDERO – que o cabra Manoel Duda, deitou a paciente no chão e quando ia começar as suas conxambranças, viu todas as encomendas della que só o marido tinha o direito de ver.

CONSIDERO – que a paciente estava pejada e que, em conseqüência do sucedido, deu à luz um menino macho que nasceu morto.

CONSIDERO – que a morte do menino trouxe prejuízo na herança que podia ter quando o pae delle ou a mão falecesse.

CONSIDERO – que o cabra Manoel Duda é um sujeito deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas visinhas, tantoque quis também fazer conxambranças com a Quitéria e a Clarinha, que são moças donzellas e não conseguio porque ellas repugnaram e deram aviso à polícia.

CONSIDERO – que Manoel Duda é um sujeito perigoso e que se não tiver uma causa definitiva que atalhe a perigança delle, amanhã está metendo medo até nos homens por vias de suas patifarias e deboches.

CONSIDERO – que Manoel Duda está em pecado mortal porque nos Mandamentos da Igreja é proibido desejar a mulher do próximo e elle desejou.

CONSIDERO – que sua Majestade Imperial e o mundo inteiro precisam ficar livres do cabra Manoel Duda, para século seculorum amém, arrefém dos deboxes praticados e sembregonhesas por elle praticadas.

CONSIDERO – que o cabra Manoel Duda é um sujeito semvergonha que não nega as suas deboxanças e ainda fez isnoga das encomendas das suas victimas e por isso deve ser botado regime deste julgo.

POSTO QUE:
Condeno o cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, e por tentativa de mais outros malifícios iguais, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a golpes de MACETE, após amarrar suas encomendas com barbante encerado e apertar com força até que a mesma fique arroxeada. A execução desta pena deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro. Mulheres e crianças não podem assistir a capação.

O nosso pastor aconselha: “Omine debochado deboxatus mulherorum infligitatus esta sententias quibus capare est macete macetorum carrascus sine facto nostre negare potest”. Feita a capação, depois de 30 dias, o mesmo carcereiro solte o cujo cabra para que ele se vá em paz.

Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos. Apelo ex-oficio desta sentença para o Dr. Juiz de Direito desta Comarca. Porto da Folha, 15 de Outubro de 1833. Manoel Fernandes dos Santos, Juiz Municipal Suplente em exercício”.

Quero crer que a derradeira esperança do taradão Manoel Duda foi apenas uma. Em razão do recurso ex-ofício feito pelo Juiz Municipal ao Juiz de Direito da Comarca, a obtenção do perdão, pelo conhecimento e superior formação acadêmica deste, que há quase uma década a Constituição Imperial de 1824 abolira por completo as penas cruéis no direito positivo brasileiro.

Caso contrário, fico imaginando como seria possível alguém, após sofrer tão doloroso, macabro e drástico castigo, ser liberado pela autoridade competente para continuar a vida desfrutando de uma autêntica sensação de paz, como rezou a fatídica sentença.

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* É membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Escreve regularmente neste blog.


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Advogado e escritor, nasceu em Óbidos. É membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Reside em Belém e escreve regularmente neste blog.

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