Cartas de Apolinário: modo de criação do artista plástico. Por Silvan Cardoso

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Cartas de Apolinário: como ele as confeccionava. Por Silvan Cardoso
Apolinário fotografado por Ericson Aires no Sebo Porão Cultural, onde ele ditou parte de suas cartas

Comecei a trabalhar no Sebo Porão Cultural, do meu amigo Ericson Aires, no início de 2016. O sebo ficava numa simpática casinha na Rua 24 de Outubro, entre a Praça Tiradentes e a Travessa Benedito Magalhães, no bairro Aldeia.

O pequeno lugar era cheio de livros usados de praticamente todos os gêneros. O ambiente era aconchegante e inspirador.

Quando eu não estava fazendo outros serviços no espaço, estava diante do notebook catalogando livros e colocando-os para vender numa plataforma digital. Foi num desses dias assim que Apolinário entrou no Porão, sempre com aquele seu jeito extrovertido.

Silvan Cardoso *

Ele já frequentava o lugar há um tempo. Mas desta vez chegara com outras ideias, já que o artista plástico também carregava consigo a poesia. Em seu modo de se expressar era impossível não notar o poeta crítico e polêmico que era.

Vinha sempre com vestimentas simples. Algumas vezes, andava com seus pincéis nas mãos e marcas de tinta pelo corpo. Neste dia em que chegou, pediu a Ericson a possibilidade de ceder o computador para que ele pudesse enviar para o Jeso Carneiro algumas ideias de “cartas” que tinha em mente para que fossem publicadas no seu blog. Recebendo uma resposta positiva, combinamos que eu ficaria digitando os textos enquanto Apolinário os ditaria.

Sentado e aguardando por suas palavras iniciais em sua primeira carta para que eu fosse digitá-las, Apolinário andava pra lá e pra cá numa pequena sala onde nós estávamos, algumas vezes com as mãos dadas para trás, outras vezes colocando uma mão no queixo e outra na cintura, possivelmente desenvolvendo as suas ideias na mente.

 

Quando vinham as palavras, dizia-me: “Escreve aí…” e começava as suas narrativas, sempre anunciando primeiro o título “Carta a…” e continuava ditando tudo o que pensava.

Houve momentos em que ele ditava quase que um parágrafo inteiro sem parar. Outras vezes demorava a escrever uma única linha. Não perdia o raciocínio, mas procurava a melhor forma de colocar as suas palavras.

Apolinário não fazia rascunhos em papéis ou cadernos para criar as suas cartas. Tudo saía direto de sua mente e eu passava imediatamente para o computador.

Eram minutos de muita concentração, às vezes troca de ideias, opiniões compartilhadas e alguns copos com água. Quando o escrito estava finalizado, ele me pedia para ler todo o texto em voz alta. Eu lia e relia. A leitura de cada parágrafo era uma análise profunda e diferente que ele fazia.

A sua crítica, a sua posição política e o seu jeito irônico de ser alimentavam e enriqueciam os seus textos, tornando-os bastante interessantes. E quando finalmente aprovava a sua carta, pedia-me para enviar pelo seu e-mail para o editor do blog.

Poucos dias depois, lá vinha o poeta. Poeta e também cronista. O cronista que vinha da cidade, que tinha experimentado a cidade e que já estava preparado para ditar a próxima história que se passava em sua mente.

Chegava falante e com ideias para uma nova carta. Eu já me preparava. Deixava o Word aberto e com as mãos sobre o teclado. E era sempre aquela mesma cerimônia: dizia o título, pensava um pouco e em seguida falava sem parar o primeiro parágrafo, às vezes caminhando pelos quatro cantos do cômodo, outras vezes parado ao meu lado, olhando fixamente para o que eu escrevia.

 

Eu pouco falava. Esperava mais dele. Ele se encarregava em dizer todas os termos. Em poucas situações, ditava e ao mesmo tempo folheava alguns livros. Não os lia, somente folheava. Também contemplava as poucas pinturas e desenhos que eram vistos nas paredes.

Cada carta tinha uma trajetória única. Foram momentos que não tiveram nenhum registro fotográfico. Somente recordações de quem estava naqueles momentos.

Não lembro a ordem de cada carta que foi escrita, mas recordo os títulos de algumas, como a Carta para Lewandowski, a Carta para Vossa Santidade Papa Francisco, a Carta para Socorro Pena e a Carta para o prefeito Alexandre Von.

Cartas que chamaram a atenção de muitas pessoas e que conquistaram inúmeros comentários. Poderiam ter surgido mais cartas da mente do artista. Mas seus pensamentos não tinham limites e ele não ficaria “estacionado” somente em criar cartas, utilizando nomes de outras personalidades como personagens.

Pelo menos comigo as cartas não continuaram a ser escritas. Sua mente não tinha limites e muitas coisas ainda tinha para se fazer. Santarém abraçava Apolinário de todas as formas, junto das letras, das pinturas e das esculturas…


— * Silvan Cardoso é poeta, cronista e pedagogo.

→ LEIA também de Silvan Cardoso: Apolinário, a eterna, provocante e icônica voz do povo


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