Trágico revival

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Trágico revival, Barco explode em Santarém. “Hanna Janessa”

por Célio Simões (*)

Célio Simões - Blog do JesoDebruçado na amurada do “Almeida Júnior”, o portentoso barco que fazia a linha Oriximiná/Santarém no início da década de 1970, passei parte da madrugada sentindo o cheiro gostoso do remanso trazido pela brisa do Amazonas, dividindo com Agenor, seu proprietário, generosas porções de café com que espantávamos o sono, servidas pelo solícito cozinheiro.

Tímido e caladão, ele era um excelente papo. Desta feita, me contava com orgulho que se sentia realizado, pois o transporte de cargas e passageiros entre as duas cidades, com breve parada em Óbidos, lhe dera estabilidade econômica e tudo indicava que o horizonte lhe sorria sem percalços, de vez que o único concorrente, o “Rio Hidequel”, do qual era proprietário seu amigo obidense Orivaldo Nunes, não era páreo para seu, mais potente e com maior capacidade operacional.

Surpreendeu-me, portanto, a certa altura da narrativa, a confidência de que no final no ano pretendia parar. E ante a minha muda indagação esclareceu o porquê daquela decisão: a necessidade de estar mais tempo com a família, a fadiga de quem passava as noites em claro supervisionando os serviços de bordo, o risco que era enfrentar as pavorosas tempestades tropicais naquele vasto trecho desabrigado do farol do Patacho, os traiçoeiros bancos de areia que se multiplicam na vazante, o sempre possível choque do casco com enormes troncos submersos, alegações todas plausíveis.

Ademais, os lucros até então obtidos já justificavam a mudança de ramo, talvez um estabelecimento comercial em sua própria cidade, imune aos fatos e acidentes da navegação.

No tempo previsto aportamos em Santarém. Com a valise sob o braço me despedi, deixando a próxima viagem agendada. Antes de chegar ao Bar Mascote, ainda vi os passageiros descendo pela prancha do convés e a pé, alcancei a Av. Adriano Pimentel, rumando para minha residência na Prainha, via Praça São Sebastião. Lá chegando, a terrível notícia me esperava: o Almeida Júnior explodira, virara uma bola de fogo, havia mortos e feridos espalhados pela praia – algo como nunca se vira.

Retornei imediatamente e fiquei perplexo. A embarcação, cujos cabos de vante haviam sido cortados para evitar que o fogo atingisse as casas da orla, ardia a uns cinquenta metros perau a dentro e assim ficou queimando até as chamas atingirem a linha d’água, quando submergiu por completo. Na praia jaziam corpos mutilados, inclusive o do solícito cozinheiro que nos brindara com o café durante a madrugada.

Morto também estava o maquinista e para minha consternação, do Agenor foram encontrados apenas fragmentos de seu corpo: parte da perna direita, identificada pela calça e pelo sapato de couro preto que usava na fatídica viagem. De outro passageiro, as cinzas que dele foram recolhidas cabiam numa calota de automóvel, improvisada de ânfora mortuária. Os que conseguiram se salvar, vagavam olhando para o nada, ostentando no rosto sem expressão tons cadavéricos e opalescentes, ainda em choque pela formidável força da explosão.

Naquela cidade pacata, que vivia seu cotidiano sem maiores sobrossos como era Santarém em 1970/71, a notícia foi divulgada pelas duas rádios locais e em pouco tempo toda a região do Baixo Amazonas tomou ciência do lamentável episódio. Nele, salvo engano, faleceu também um familiar do meu estimado amigo Padre Sidney Canto, tripulante do famoso barco. Não existia ainda o Corpo de Bombeiros e foram os populares que fizeram suas vezes, movidos pela solidariedade humana, empenhando-se para minorar os sofrimentos dos sobreviventes.

À muda indagação popular do que teria provocado tão infausto acontecimento, as autoridades da Marinha apuraram que, findo o abastecimento e com os porões tomados pelos vapores altamente inflamáveis gerados por 3.000 litros de gasolina, foi precipitadamente acionada a bomba elétrica para esgotar a água do porão, produzindo a centelha que causou a monumental explosão.

Mais de quatro décadas se passaram e agora o fato se repetiu, com semelhantes conotações, desta vez envolvendo o vistoso “Hanna Janessa” [foto], que fazia a linha Santarém/Lago Grande, nas imediações da Vila Arigó. Pelo que revela a imprensa local, tão logo encerrou o abastecimento foi acionado o propulsor, provocando a tragédia, numa reprise do que houve há quase meio século – uma mistura de vapores inflamáveis, centelhas e falta de cautela.

Como no “Almeida Júnior” as chamas rapidamente se alastraram, consumindo o passadiço e o casco, que pouco depois se partiu ao meio e submergiu, deixando um rastro de prejuízos materiais, perdas de preciosas vidas humanas e muitos feridos, vítimas de queimaduras de diversos graus, que produzirão sequelas, no corpo e no espírito dos que, ainda que por breves momentos, viveu o pesadelo.

A perícia cumprirá tão somente uma formalidade, no propósito de apontar as razões do infortúnio, conquanto essas sejam a priori perceptíveis. Quando se trata de meio de transporte, seja ele qual for, não se pode descurar das regras de segurança, sob pena do pagamento de um alto preço pelo descuido. Flexibilizar tais regras principalmente quando se tem, por imperativo da profissão, a responsabilidade de zelar por vidas humanas, é desafiar o bom senso, arrostando consequências desastrosas e irreversíveis, como o recente e lamentável acontecimento que resultou em mortes e roubou a paz dos moradores da Vila Arigó.

Até quando armadores e tripulações adotarão as medidas eficazes para reduzir ao mínimo as chances de catástrofes como essa, que pelo inusitado abalam o cotidiano de uma cidade?

Normas legais, infelizmente esquecidas, preconizam que operações em postos e bombas de abastecimento de inflamáveis líquidos, que impliquem atividades ligadas ao abastecimento de viaturas terrestres, marítimas ou fluviais com motores de explosão são altamente perigosas, bastando simples leitura do Anexo 2 da Norma Regulamentar 16 do Ministério do Trabalho.

O desconhecimento desse regramento para quem manipula inflamáveis, a meu ver não justifica o afrouxamento de todas as cautelas exigíveis, posto que em certas situações de notório perigo, todas as regras de convivência humana, automaticamente passam a ceder lugar ao mais primitivo instinto de sobrevivência.

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(*) Advogado e escritor, é membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e colaborador do blog.


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Advogado e escritor, nasceu em Óbidos. É membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Reside em Belém e escreve regularmente neste blog.

3 Responses to Trágico revival

  • Meu velho amigo Célio.A descrição da tragédia que vitimou o nosso querido amigo Agenor me encheu de emoções e recordações. Fiquei impressionado com a precisão dos fatos relatados, ocorridos há quase 50 anos, o que demonstra que a sua memória ainda está a pleno vapor. Saudades daqueles tempos.
    Abraços: Marcelo Spinola Salgado

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